Uma homenagem ao poeta da calçada
Por Julio Cesar Cardoso de Barros
João Batista Nogueira Júnior, o João Nogueira (12/11/1941-5/6/2000), cantor e compositor que se
autodefinia como um sambista da calçada – como Noel Rosa - em contraponto aos
sambistas do morro, morreu no dia 5 de junho de 2000, deixando uma legião de fãs de seu estilo muito pessoal de compor e cantar o samba e uma obra impecável. Talentoso e muito querido, ele emprestou seu nome a um centro cultural na sua cidade natal. No dia 8 de fevereiro de 2011, a prefeitura do Rio de Janeiro deu início
às obras do espaço em sua homenagem, no local onde funciona a casa de
espetáculos Imperator, um antigo cinema para 2 400 pessoas, que foi o maior da
América Latina. No dia 12 de junho de 2012 a obra foi inaugurada com show para convidados e no dia 15 foi aberta ao público em geral. A prefeitura fez um investimento de 21 milhões de reais no prédio, que
conta com salas de cinema, teatro, exposições, livraria e
bistrô, além de um local exclusivo para guardar o acervo do artista. O prédio
de três andares previa ainda um terraço verde de 1 200 metros quadrados com
restaurante. O terreno, localizado no Méier - bairro onde João Nogueira nasceu,
em 12 de novembro de 1941 - foi cedido pelo Estado em cerimônia da qual
participaram o governador Sérgio Cabral, o prefeito Eduardo Paes, o cantor
e compositor Diogo Nogueira, filho de João, e Ângela Maria Nogueira, sua viúva.
Filho de um advogado e violonista que tocava com a Velha Guarda do
samba e com chorões de porte, João Nogueira começou a compor aos 15 anos,
fazendo sambas para o bloco carnavalesco Labareda, do Méier, através do qual
conheceu o músico Moacyr Silva, dirigente da gravadora Copacabana, que o ajudou
a gravar o samba Espere, Ó Nega, em 1968. Mas ele apareceu na
cena artística nacional quando no início dos anos 70 emplacou o sucesso Das
200 Pra Lá, samba que defendia a política de expansão de nossa fronteira
marítima ao longo de 200 milhas da plataforma continental. O
samba assumiu as primeiras posições das paradas na voz de Eliana Pittman e
mereceu citação em reportagem da revista americana Time, pelo seu tom
nacionalista afirmativo. Funcionário da Caixa Econômica, João se viu às voltas
com certo patrulhamento, já que a bandeira das 200 milhas havia sido levantada
pelo governo militar. "Pensaram que eu tinha virado Dom e Ravel",
brincou ele mais tarde. Seu primeiro disco foi um compacto simples com Alô
Madureira e Mulher Valente. Em 1969 Elizeth Cardoso gravou seu Corrente
de Aço, no disco Falou e Disse.
João Canta Do Jeiro que o Rei Mandou:
Mas o primeiro álbum, que levou seu nome no título, só veio em 1972,
pela Odeon, selo pelo qual lançaria seus primeiros seis LPs. No disco, um
clássico: Beto Navalha, regravado com grande força por Martinho da
Vila, em 1973, no LP Origens. Mas a largada para valer de João
Nogueira na carreira se deu em 1974, com seu segundo LP, E Lá Vou Eu,
disco que chamou a atenção da crítica e do mercado para uma novidade no reino
do samba. A começar pelas parcerias com Paulo César Pinheiro (E Lá Vou Eu,
Batendo a Porta, Eu Hein, Rosa (esta regravada por Elis Regina
com grande sucesso em 1979), Partido Rico e o lírico Braço
de Boneca), Zé Catimba, o genial compositor da Imperatriz, aparece em Do
Jeito Que o Rei Mandou, e a irmã Gisa Nogueira em Meu Canto Sem
Paz e Eu Sei Portela. O disco resultou num show intimista em que
o carioca se apresentou ao violão no Teatro 13 de Maio, em São Paulo, para uma
platéia embevecida com a novidade.
João era diferente, não vinha do morro nem das escolas de samba, embora
frequentasse a Portela desde criança, levado pelo pai, e não era o
compositor de apartamento que fazia o ritmo popular, como Carlinhos Lyra, Tom
Jobim e tantos outros. Se aproximava mais de Paulinho da Viola, com seu samba
de varanda, som de subúrbios de casas avarandadas, de terreno antigo trilhado
no choro e na seresta. Seu jeito de cantar era típico dos intérpretes do samba
sincopado dos anos 40 e 50. Mas tinha personalidade. Como os velhos
cantores, João brincava com a divisão, reinventando a síncopa. "É mais um
João que veio diferente no cantar samba e fazer verso. É mais uma reza forte
nas quebradas", disse dele o radialista e produtor Adelzon Alves, um
grande impulsionador de seu início de carreira. Estava aberta a porteira pela
qual João faria passar sua boiada. Em 1975, lançou Vem Quem Tem, novo
grande disco, no qual se destacou a homenagem que fez a Natal, o todo poderoso
dirigente da Portela e bicheiro de Madureira, a quem dedicou O Homem de Um
Braço Só.
Se no LP de 1974 ele reservara uma faixa para Noel Rosa, de quem gravou Gago
Apaixonado, neste ele gravaria Não Tem Tradução, reverenciando
mais uma vez o poeta da Vila, um dos três esteios de sua inspiração, ao lado de
Geraldo Pereira e Wilson Batista, dos quais recebeu as influências que
explicavam seu estilo de compor e cantar o samba – e aos quais dedicaria um LP
inteiro (Wilson, Geraldo e Noel,
1981, Polygram). O disco, contudo, seria lembrado por outros sucessos,
como Nó na Madeira (parceria com Eugênio Monteiro) e Mineira,
uma homenagem a Clara Nunes, parceria com P. C. Pinheiro, o marido da cantora.
O disco trazia ainda três parcerias com um jovem violonista de muito talento,
que se revelava ótimo compositor, Cláudio Jorge, com quem assinou três faixas
do disco (Samba da Bandola, Chorando Pelos Dedos e Pra fugir Nunca
Mais). Ivor Lancelotti, de quem João gravara o lindo samba-canção De
Rosas e Coisas Amigas, no disco de 1974, reaparecia com Seu Caminho Se
Abre. Em 1979 ele introduziria o parceiro no show João Nogueira
Apresenta Ivor Lancelotti. Quando Diogo
Nogueira, seu filho, canta Espelho, faixa título do disco que
João lançou em 1977, os jovens que formam sua legião de fãs imaginam que ele
está falando do pai, nos versos que dizem “Um dia chutei mal e machuquei o
dedo/ E sem ter mais o velho pra espantar o medo/ Foi mais uma vontade que
ficou pra trás”. Afinal, Diogo foi jogador profissional de futebol, esporte que
abandonou depois de sofrer uma séria contusão. Na verdade a letra da
música é auto-biográfica, sim, mas de João, o pai, referindo-se ao avô de
Diogo. O flamenguista João Nogueira foi também um boleiro frustrado por uma
contusão.
Nos quatro primeiros discos que João lançou estavam dadas as linhas mestras
do que seria sua carreira. E está contido o melhor do compositor, que um dia
entrou no Portelão cantando “Hoje eu estou cheio de alegria/ E sou até capaz de
me embriagar/ Uns amigos bambas neste dia/ Me convidaram a participar/ De uma
escola de samba que é todo meu dengo/ De um terreiro de bambas que é todo meu
mal/ Vou me livrar da tristeza/ E sambar na beleza do seu Carnaval”, samba de
apresentação à ala dos compositores da Águia de Osvaldo Cruz, que o convidará a
se juntar a seus bambas, em 1972. O namoro duraria até meados dos anos 80,
quando João abandonou a escola, descontente com os rumos que o presidente
Carlinhos Maracanã lhe impôs, e juntou-se a outros sambistas, herdeiros do
velho Natal, para fundar, em 1984, a Tradição, escola para a qual compôs em
parceria com P. C. Pinheiro os cinco primeiros sambas-enredo, de 1985 a 1989.
Diogo, seu filho, é a reconciliação com a Portela,
onde foi por quatro vezes vencedor do samba-enredo.
João canta Espelho:
Em 1979, João fundou o Clube do Samba, com Alcione, Martinho da Vila e Beth
Carvalho, entidade à qual dedicou o título de seu disco daquele ano, que
trouxe novos sucessos, como Súplica e Canto do Trabalhador
(com P. C. Pinheiro). O clube, que no início funcionava em sua casa e que
mais tarde lançou um bloco carnavalesco para desfilar na Avenida Rio Branco
arrastando foliões saudosos dos velhos carnavais, funcionou em vários
endereços, inclusive na Barra da Tijuca. Pelo seu palco passaram os
grandes nomes do samba e compositores das escolas cariocas. Era frequente a
programação reunir numa mesma noite gente do naipe de Ivone Lara, João Nogueira
e Roberto Ribeiro, que um ano depois de sua morte foi homenageado pelo bloco no
Carnaval. O próprio João, morto no ano 2000, seria homenageado no Carnaval
seguinte com o tema “Como Diria João”.
Uma das músicas mais cantadas de João, uma espécie de hino dos compositores,
foi o sucesso do disco de 1980, Boca do Povo. Trata-se de Poder da
Criação (“Ninguém faz samba só porque prefere/ Força nenhuma no mundo
interfere/ Sobre o poder da criação”), novamente com P. C. Pinheiro, seu
parceiro mais constante, com quem acabou por lançar o CD Parceria,
em 1994, no qual comemoravam 22 anos de composições conjuntas e mais de 50
obras compostas. "A gente senta junto e, quando levanta, está saindo um
samba. Até mesmo sem querer", diria João. Nas dezessete faixas do CD,
há uma homenagem a Clara
Nunes, morta em 1983, nas faixas Um Ser de Luz e As Forças da
Natureza, de versos emocionados como As pragas e as ervas daninhas/ As
armas e os homens do mal/ Vão desaparecer/ Nas cinzas de um Carnaval. João
lançaria outros grandes discos, como o já citado em homenagem aos três grandes
do samba, Wilson, Geraldo, Noel, seu nono álbum (1981), só com
músicas dos três autores, dando descanso à parceria com P. C. Pinheiro.
João canta Nó na Madeira:
Ele seguiria lançando discos de qualidade (18 álbuns-solo no total) e
participaria de discos coletivos, como Clara Nunes – Com Vida (1995),
no qual dividiu as faixas com gente como Martinho
da Vila, Roberto Ribeiro e Nana Caymmi. E Chico Buarque da Mangueira
(1998), disco em homenagem ao compositor, que era enredo da escola naquele ano.
Em 1995, com o maestro e pianista Marinho Boffa, João gravaria um CD só com
músicas desse mesmo Chico Buarque de Hollanda, num trabalho de Almir Chediak
com catorze canções, dentro da segunda edição do projeto Letra e
Música. O disco foi lançado com um show no programa Seis e Meia
do Teatro João Caetano. Ele participou também do disco Esquina do Samba,
gravado ao vivo em 2000 no botequim Pirajá, em São Paulo, com Ivone
Lara, Walter Alfaiate, Beth Carvalho, Moacyr
Luz, Luiz Carlos da Vila e outros. No mesmo ano participou de um disco
da Velha Guarda da Portela. Em 2009 foi çançado um DVD da participação de João
Nogueira no programa Ensaio, da TV Cultura de São Paulo.
João Nogueira morreu na madrugada do dia 5 de junho de 2000, aos 58 anos,
vítima de um infarto fulminante, em sua casa no Recreio dos Bandeirantes. João
vinha sofrendo de problemas circulatórios que lhe haviam causado uma isquemia
cerebral dois anos antes. Esteve internado em estado grave por um bom tempo,
mas conseguiu se recuperar. Sofreu nova isquemia de menor impacto no início de
2000 e outra dois meses depois. Mas, sob observação médica, estava confiante,
levava uma vida mais regrada, e ensaiava para shows que faria por aqueles dias,
nos quais planejava apresentar trabalhos inéditos, além de sucessos de seu
último álbum, João de Todos os Sambas, lançado em 1998 na
quadra da Escola de Samba Acadêmicos da Rocinha, na favela que era homenageada
no disco: "Junto ao mar/ Num morro que era ainda despovoado/ E
dividia a Gávea e São Conrado/ Nasceu uma favela", dizia na faixa Rocinha.
Foi uma perda grande para a cena musical brasileira. "Ele tinha uma forma
de frasear muito própria. Não vejo seguidores dele. Creio que essa escola, cuja
origem talvez tenha sido Ciro Monteiro, se acaba com a morte de João",
lamentou Hermínio Bello de Carvalho. Todos sabiam de suas qualidades especiais
de intérprete, mas João valorizava mesmo as composições. Só em 1999, quando
recebeu o Troféu Eletrobras de MPB é que reconheceu seu canto. "Hoje estou
adorando cantar. Antes, gostava que me vissem mais como compositor",
disse. João deixou três filhos, entre eles Diogo, que pegou o bastão, não
deixou a peteca cair e nos faz matar as saudades do pai, dada a semelhança
física, vocal e a simpatia com que representa o melhor samba carioca.
VEJA.COM 19/02/2011
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