domingo, 3 de maio de 2020

O SOM DO BRASIL

Origem e evolução do samba


Por Julio Cesar Cardoso de Barros


O samba moderno, conhecido como o ritmo brasileiro por excelência, nasceu na Bahia e se criou no Rio de Janeiro. Ele vem das batucadas festivas dos terreiros, do samba-de-roda do Recôncavo Baiano e tem influências harmônicas do choro e do maxixe. Conheça as raízes dessa música e os subgêneros que gerou ao longo de sua evolução.

1870 – Choro
Música instrumental popular, tocada com piano, bandolim, violão, cavaquinho e flauta nos salões do subúrbio carioca na segunda metade do Século XIX. Era basicamente a forma de os músicos brasileiros executarem os gêneros musicais da moda na Europa, como a polca, a valsa e o schottisch (xote), além do lundu, ritmo e dança de origem africana. O gênero foi fixado, entre outros, pela compositora e pianista Chiquinha Gonzaga (1847-1935), cujos choros Atraente e Faceiro são tocados até hoje, e pelos flautistas Joaquim Callado (1848-1880) e Viriato Figueira (1851-1883).

Chiquinha Gonzaga

Talitha Peres  toca Faceiro, de Chiquinha Gonzaga, no Teatro Municipal de São João del-Rei (MG):

1870 – Maxixe
Contemporâneo do choro e como ele influenciado pela polca e outros ritmos de salão da última metade do Século XIX, o maxixe foi cultivado pelos chorões e teve em Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazaré dois de seus maiores criadores. O ritmo entrou nas primeiras décadas do Século XX pelas mãos dos músicos negros do Rio de Janeiro e é um dos precursores do samba carioca.

Ernesto Nazareth


Virginea Rosa canta Maxixe do Barradas, de Chiquinha Gonzaga, com Maria Teresa Madeira ao piano:

1876 – Samba-de-roda
Modalidade musical cultivada pelos negros do Recôncavo, o samba de roda é cantado até hoje em rodas de capoeira e em festas profanas de terreiros onde se cultuam os deuses do panteão africano. No final do Século XIX, foi trazido para o Rio, já no final da escravidão, pelas tias baianas, mães-de-santo em cujas casas se praticava o candomblé e onde se reuniam em festejos profanos seus filhos de santo, filhos de sangue e convidados. A mais famosa dessas tias foi Ciata (1854-1924), que chegou ao Rio em 1876.

Samba de roda da Bahia

Samba de roda na Bahia:

1899 – Marchinha Carnavalesca
Além do choro e do maxixe, Chiquinha Gonzaga tem seu nome intimamente ligado às marchinhas carnavalescas. É dela a primeira marchinha a fazer sucesso no reinado de Momo: Ô Abre Alas (1899). Composta para o bloco Rosa de Ouro, a música é tida como a primeira de um gênero inspirado nas marchas portuguesas, de ritmo mais marcial, que foram muito populares no Rio de Janeiro até o início do Século XX. Lamartine Babo e Braguinha foram dois dos maiores autores de marchinhas, que são tocadas até hoje no Carnaval.

Lamartine Babo

Ouça Ô Abre Alas com Marlene, Emilinha e Angela Maria e Leandro Braga (Piano):

1917 – Samba-maxixe
Convencionou-se que o primeiro samba gravado no Brasil foi Pelo Telefone, de Mauro de Almeida e Donga cantado por Baiano. É um marco, mas logicamente outras músicas do gênero já existiam. Eram resultado da influência do maxixe e do samba-de-roda que os baianos trouxeram para o Rio e cantavam nas festas das tias da zona portuária da Gamboa e da Saúde, num movimento que depois se espalhou pela Cidade Nova, com a modernização do centro e a derrubada das moradias precárias onde viviam os negros. Pelo Telefone era mais um maxixe que o samba como o conhecemos. O samba moderno é uma evolução surgida nos morros e nos bairros do Estácio e Vila Isabel, fruto da troca entre sambistas das favelas e do “asfalto”.

Sinhô


Zeca Pagodinho canta Jura, de Sinhô:

1927 – Samba Carioca
Compositores da cidade, que subiam o morro para batucadas memoráveis e compositores do morro que desciam para frequentar os cafés, que eram pontos de encontro de artistas, criaram um novo modo de cantar o samba. Baiaco, Brancura, Bide, Ismael Silva e muitos outros autores já almejavam, por essa época, a profissionalização. O primeiro samba de Ismael Silva  gravado por Francisco Alves em 1927 (Me Faz Carinho), é um marco do nascimento do samba carioca, que resiste até hoje. Um exemplar esplêndido dessa safra de sambas é Se Você Jurar.

Noel Rosa


Ouça Se Você Jurar, do filme Noel, o Poeta da Vila:

1928 – Samba-Canção
O primeiro samba-canção foi provavelmente Linda Flor (Ai, ioiô), gravado com gigantesco sucesso pela atriz Aracy Cortes. Um bom exemplo de samba-canção é Último Desejo, de Noel Rosa. É um estilo de samba meloso, romântico, com influências mistas, da modinha e do fado portuguêses  na harmonia, do bolero na temática e nas melodias. Custódio Mesquita, Dolores Duran, Antonio Maria, Tido Madi, Adelino Moreira, Tom Jobim e outros grandes nomes da MPB fizeram sambas-canção, um dos estilos mais populares de música brasileira, com espaço amplo no rádio das décadas de 20 a 60.

Custódio Mesquita

João e Bebel Gilberto cantam Linda Flor, no Palace, São Paulo, em 1994:

1930 – Partido Alto
Desde antes de Pelo Telefone - o primeiro samba a ser gravado, segundo a convenção - o pessoal que se reunia nas festas das tias baianas, na zona portuária do Rio, já cantava refrões seguidos de versos improvisados. Herança dos sambas-de-roda e outras formas de sambas baianos sustentados por um refrão intercalado por versos, com o povo marcando o ritmo na palma das mãos e fazendo côro, enquanto os ritmistas seguravam o andamento nos couros, batucando em caixotes ou raspando um prato com a faca. Chamado às vezes de partido alto baiano, chula raiada ou samba raiado, ele esteve presente no repertório dos sambistas por todo o início do Século XX. A década de 30, no entando, parece ser a época em que o partido tomou a forma que tem hoje. Em 1931 o Grupo Guarda Velha gravou de Pixinguinha, Donga e João da Baiana os partidos Há! Hu! Lahô! e Conversa de Crioulo. Em 1932, Pixinguinha teve gravado o Samba de Fato, feito em parceria com Cícero de Almeida, ainda com aquele andamento amaxixado dos primeiros sambas, em que dizia: Refrão: “Samba de partido-alto/ Só dá cabrocha que samba de fato”. Versos: Só dá mulato filho de baiana/ E gente rica de Copacabana/ Doutor formado de anel de ouro/ Branca cheirosa de cabelo louro”. Por essa época o samba de partido alto começou a ser cantado nos terreiros de samba como uma espécie de desafio de repentistas. O refrão era cantado em coro pelos presentes e dois ou mais partideiros improvisavam versos. Vencia aquele que superasse os demais nas rimas.  Candeia foi um partideiros dos mais respeitados.

Candeia


Candeia no filme Partido Alto, de Leon Hirszman:

1936 – Samba-de-Breque
Moreira da Silva conta que foi por acidente que o breque apareceu durante show num cinema do subúrbio carioca do Méier, em 1936. “Foi por acaso, como quase todas as descobertas dos cientistas. Eu estava cantando um samba fraquinho e decidi interromper e improvisar umas falas só para brincar com a platéia. O Tancredo Silva me deu um samba de quatro linhas (Jogo Proibido) e eu improvisei em cima: ‘Meto a solingen na garganta do otário e ele geme, ai, ai, meu Deus! Não posso mais. Vou me acabar’. Aí nasceu o breque”. Clássicos do gênero são Acertei no Milhar, de Wilson Batista e Geraldo Pereira (1940) e Na Subida do Morro, de Moreira da Silva e Ribeiro Cunha (1952).

Na Subida Do Morro, com Moreira da Silva:

1939 – Samba-Enredo
O samba de Paulo da Portela, Teste ao Samba, é considerado o primeiro samba-enredo. Até então as escolas cantavam sambas variados, sobre assuntos que nada tinham a ver com as fantasias. O samba de Paulo foi cantado no desfile de sua escola no Carnaval de 1939. Um clássico do gênero, que serviu de parâmetro para muitos compositores, é Aquarela Brasileira, de Silas de Oliveira, samba do Império Serrano em 1964.

Silas de Oliveira


Aquarela Brasileira, de Silas de Oliveira, com Martinho da Vila:

1939 – Samba exaltação
Ary Barroso, com Aquarela do Brasil, inaugurou esse estilo de samba, em 1939. Feito sob a ditadura Vargas, o samba foi gravado por Francisco Alves, o Rei da Voz, e interpretado por Cândido Botelho no musical beneficente Joujoux e Balangandans, patrocinado pela primeira-dama Darcy Vargas. As escolas de samba também criaram o seu samba exaltação, que canta as virtudes da escola. É o exemplo de Um Rio que Passou na Minha Vida, de Paulinho da Viola, que exalta a Portela.

Ari Barroso


Aquarela do Brasil numa animação de Walt Disney com o Pato Donald e Zé Carioca:


1941 – Samba Sincopado

Para estabelecer um marco, meio arbitrariamente, do surgimento do samba sincopado, há quem diga que 1941 é o ano do seu nascimento, com A Mulher que Eu Gosto, de Wilson Batista e Ciro de Souza (que chamava o estilo de samba de telecoteco), grande sucesso na voz de Ciro Monteiro. Outros dizem que é Sinto-me Bem (1941), de Ataulfo Alves. Mas esses sambas estavam mais para o “samba direto” do que para sincopado. Na verdade, faltava-lhes a ênfase na síncope ou síncopa. Falsa Baiana (1944), de Geraldo Pereira, é um exemplar clássico do gênero. A síncopa, que caracteriza o samba, é a execução da nota fora do tempo normal dos compassos. O samba é composto em compasso binário e ritmo sincopado, mas no samba sincopado há, por assim dizer, um exagero da síncopa. O sambista faz isso adiantanto ou prolongando o fraseado em desarmonia com o compasso, faz o que os músicos chamam de contratempo.

Geraldo Pereira


Gal e Gil interpretam Falsa Baiana (Geraldo Pereira), no show Viva Brasil, em Paris (2005):

1956 – Samba de Bloco
A fundação do Bafo da Onça, em 1956, é um marco adequado para o surgimento do samba de bloco, ou samba de embalo. Os blocos de embalo, como o Bafo, são filhos diretos dos blocos de sujo, que eram a forma mais comum de o carioca brincar o Carnaval. Na medida em que alguns desses blocos cresceram e se organizaram, foram se transformando nos maiores agrupamentos da folia de rua. Os blocos cantavam sambas curtos, de fácil apelo, próprios para serem cantados pela multidão, incluindo pessoas que nunca os tinham ouvido antes. Sambas assim já eram cantados no Carnaval, rivalizando com as marchinhas carnavalescas. Com o surgimento dos blocos de embalo e a composição de sambas próprios para o desfile de cada ano, eles se tornaram um novo gênero. Boêmios do Irajá, Cacique de Ramos e Bafo da Onça são os blocos de embalo mais populares, que viveram seu auge nos anos 70. Dois sambas de embalo que marcaram época foram Vou Festejar (Neoci, Dida e Jorge Aragão) e Coisinha do Pai (Jorge Aragão, Almir Guineto e Luiz Carlos), do Cacique de Ramos, que acabaram virando sucesso na voz de Beth Carvalho no final dos anos 70.

Desfile do Cacique de Ramos

Beth Carvalho canta Vou Festejar com o Cacique de Ramos:

1958 – Bossa Nova
Samba que surgiu nas reuniões dos apartamentos da Zona Sul carioca, seu marco oficioso é o lançamento de Chega de Saudade (Tom e Vinicius) na voz de João Gilberto, em 1958. Seu habitat , além do apartamento da classe média carioca, foram as pequenas casas noturnas do Rio, de clima mais intimista. Seus intérpretes são herdeiros de um jeito de cantar que destoa da tradição dos grandes gogós, como Francisco Alves, Vicente Celestino e outros. Sua escola remonta a Mario Reis, passa por Tito Madi, com um jeito de cantar mais leve, de voz pequena, mais intimista. Os músicos da Bosa Nova eram fortemente influenciados pelo jazz, que ouviam loucamente, e pela fossa, pela dor-de-cotovelo, cantada nos sambas-canção, que marcou a música brasileira dos anos 50 e emprestou-lhes seu tom recatado. Há quem afirme que foi a batida de violão de João Gilberto que consolidou a Bossa Nova como um novo estilo musical. O violão de João segura o ritmo com sutis desenhos assimétricos nos acordes. Não à toa ele se deu tão bem cantando sambas sincopados.

João Gilberto e Tom Jobim


João Gilberto canta Chega de Saudade:

1963 – Sambalanço
Tipo de samba surgido nas casas noturnas do Rio e São Paulo, o sambalanço tem como marco a batida apresentada em 1963 por Jorge Ben, com a música Mas Que Nada. Claramente influenciado pelo modo de cantar dos bossanovistas e com uma batida de violão paletada como no rock’n’roll, o novo som se sustentava numa levada de samba leve, com predomínio da vassourinha na bateria ou na timba. Ao longo dos anos 60, o sambalanço foi ganhando consistência e volume, inspirando uma forma de dança de salão que fundia os volteios do rock dos anos 50 com os floreados da gafieira. Virou um sucesso nos bailes negros de São Paulo. O sambalanço passou a ser chamado, também, de samba-rock. Ed Lincoln com sua banda, Elizabeth Vianna, Trio Mocotó, Noriel Vilela são alguns dos nomes dessa fase, além de Jorge Ben, é claro.

Jorge Ben canta Mas que Nada:

1971 – Samba-Jazz
O pianista Dom Salvador correu o mundo tocando com sambistas e jazzistas. Fez uma carreira respeitável como músico, antes de formar a banda Abolição, que em 1971 lançou o disco Som, Sangue e Raça, num estilo que ficou conhecido como samba-jazz.

Don Salvador e Grupo Abolição


Dom Salvador & Banda Abolição, Moeda, Reza e Cor (1971):
1973 – Sambão-Jóia
Egressos da Jovem Guarda, que tinha morrido anos antes, alguns compositores viram no crescente prestígio de sambistas como Martinho da Vila, Clara Nunes, Beth Carvalho e outros, uma saída para sua carreira em declínio. Em 1973, um carioca de Lins de Vasconcelos, Luiz Ayrão, gravou aquele que pode ser citado como o hino do gênero: Porta Aberta. Foi um sucesso estrondoso, que acabou por fixar o gênero assim chamado de modo pejorativo pelos críticos: sambão-jóia. Fizeram parte dessa leva o compositor santista Luiz Américo (Filho da Véia),  o baiano Ciro Aguiar (Do You Like Samba) e o fluminense Benito de Paula (Retalhos de Cetim).

Luiz Ayrão

Luiz Ayrão canta Porta Aberta no programa  Cantares, na TV Câmara (SP):

1976 – Samba-Funk
A fusão da banda de samba-jazz Abolição com o grupo Impacto 8 resultou, em 1977, na Banda Black Rio, que inaugurou o samba-funk e dominou a cena da black music brasileira nos anos seguintes.

Banda Black Rio


Banda Black Rio toca Maria Fumaça, de seu primeiro álbum (1977):

1980 – Pagode
Como toda a família do samba, o pagode já existia em formação, antes de 1980. Mas um marco efetivo do estilo é o surgimento do grupo Fundo de Quintal, na quadra do bloco carnavalesco Cacique de Ramos, no Rio. Dele faziam parte vários compositores e músicos que frequentavam as rodas de samba realizadas nos mais diversos recantos da cidade. Da formação inicial do grupo fizeram parte Almir Guineto (que introduziu o banjo de braço curto no samba), Jorge Aragão, Sombrinha, Arlindo Cruz, Neoci, Cléber Augusto, Sereno, Ubirani (que introduziu o repique de mão) e Bira. O pagode substituiu a marcação do surdo  pelo tantã (espécie de tambor com ouro só de um lado, patido com a mão). Os tambores batidos na mão se justificava por se tratar de um samba de mesa, que necessita de um acompanhamento que não encubra o canto, ao contrário do partido alto, que é um samba de terreiro, e diferente do samba de embalo, que é um samba de desfile, exigindo maior vigor na batucada, sendo o couro castigado com baquetas. Alguns desses sambistas fizeram muito sucesso em carreiras solo, ao deixar a formação original do conjunto. O termo pagode originalmente referia-se a reunião de sambistas e posteriormente aos sambas de meio-de-ano, não carnavalescos. Como subgênero do samba, ele fixou-se a partir do Fundo de Quintal. O maior representante dessa geração é Zeca Pagodinho.

Pagode no Cacique de Ramos

Fundo de Quintal e Dudu Nobre: A Batucada dos Nossos Tantãs e Levada desse Tantã:

1991 – Sambanejo
Sambanejo é a expressão pejorativa que identifica o samba romântico tocado por bandas paulistas nos anos 90. Ficou conhecido como o jeito paulista de tocar o pagode carioca. Seu marco foi o lançamento em 1991 do primeiro disco do conjunto Raça Negra, que entre outras gravou músicas de Roberto Carlos com levada de pagode. Deu origem a dezenas de outras bandas de sambas românticos tocados na linha do pagode carioca. Teclados imitando metais e paletadas de guitarra na base das cordas dão as tintas desse subgênero.

Grupo Raça Negra


Raça Negra canta Sozinho:

1997 – Pagode Universitário
Quando a onda do pagode estourou com Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e  Almir Guineto, no início dos anos 80, surgiram vários grupos que nada tinham a ver com os terreiros de samba cariocas. Alguns deles com grande sucesso, como os paulistanos Sensação, Art Popular, Katinguelê e o carioca Raça. A partir dos anos 90, o pagode começou a atrair joves da classe média, que passaram a frequentar suas rodas de samba e shows. Não demorou muito para que surgissem bandas de pagode formados por jovens brancos. Alguns desses grupos logo desapareceram, mas outros se firmaram e estão até hoje produzindo sucesso. É o caso do Sorriso Maroto, composto por garotos da Zona Sul carioca (1997), Jeito Moleque, de jovens do bairro de classe média de Santana, em São Paulo (1998) e Inimigos do HP, grupo de universitários paulistanos (1999).

Jeito Moleque



VEJA.COM 02/12/2010

sábado, 2 de maio de 2020

Aldyr Blanc


Morre um grande

Aldyr Blanc (Mendes) faria 74 anos em setembro. Era médico psiquiatra, mas abandonou a profissão pouco depois de se formar e, a partir de 1973, passou a  se dedicar à música, tornando-se um dos maiores letristas da MPB. Sua parceria com João Bosco marcou época com canções como O Bêbado e o Equilibrista, grande sucesso na voz de Elis Regina, que se transformou numa espécie de hino contra a ditadura. A Pimentinha é responsável por outro grande sucesso de Aldyr, o samba O Mestre-Sala dos Mares.  Foi parceiro de nomes como Cesar Costa Filho, Moacyr Luz, Ivan Lins, Guinga, Sueli Costa entre outros.

Sucesso indiscutível de crítica, não poucas vezes o foi também de público. São de sua lavra peças notáveis do cancioneiro nacional tornadas clássicos na voz dos maiores nomes da nossa música. Obras-primas como "Resposta Ao Tempo" (com Cristóvão Bastos) gravada por Nana Caymmi; "Querelas do Brasil" (com Maurício Tapajós l) na voz de Elis Regina), "Amigo É Para Essas Coisas", grande sucesso do grupo MPB-4.
São de sua pena ainda 
“O Rancho da Goiabada", "Corsário", "Bala Com Bala", "Dois Pra Lá, Dois Pra Cá" e "O Ronco da Cuíca" e centenas de outras composições saídas de sus inesgotável fonte de inspiração.

Nascido no bairro carioca do Estácio, berço do samba, Aldyr era um gênio das letras, mas um sujeito simples e afável, dono de um humor cortante, mas que tinha o objetivo de divertir, mais do que ferir. “Sou rigorosamente ateu, cético, cínico e escroto, nessa ordem”, dizia. Contava que sofreu preconceito durante a infância, um branquelo num meio predominantemente negro. Mas acabou se impondo pelo talento e amor ao samba. Vascaíno roxo, era autor do livro "A Cruz do Bacalhau", que escreveu em parceria com o jornalista e historiador José Reinaldo Marques.

Morador da Tijuca, figura adorada pela vizinhança da rua Garibaldi, onde durante muito tempo marcou ponto no Bar da Maria, cujos dotes culinários ele exagerava além da conta, Aldyr vivia no meio do caminho entre o subúrbio e a praia. E tinha amigos em ambos os mundos. Conhecia como poucos tanto as malocagens das quebrada quanto os vícios da Zona Sul. Era um espírito livre, um amante das coisas simples da vida, dos bate-papos de mesa de botequim e esquinas de um Rio de Janeiro que sofre, mas não se acaba.

“Aldir diz que o tijucano está em eterno estado de sítio. Para a turma da Zona Norte, o tijucano é um semi-ipanemense. Já para o pessoal da Zona Sul, é um suburbano”, disse dele o pesquisador Marcelo Sampaio, quando do lançamenti, em 2004, do filme “Aldir Blanc, Dois Pra Lá, Dois Pra Cá”, dirigido por Alexandre Ribeiro de Carvalho, André Sampaio e José Ribeiro de Moraes. 

Aldyr estava internado no Hospital Pedro Ernesto, em Vila Isabel na Zona Norte do Rio de Janeiro, região onde morava. Morreu por complicações da Cobid-19, no dia 4 de maio de 2020.

quinta-feira, 9 de março de 2017

CLEMENTINA DE JESUS

 A Rainha Ginga dos cafezais

Por Julio Cesar de Barros

Neste ano em que o samba, representado pelo maxixe Pelo Telefone, completa um século de seu lançamento (saiu em janeiro de 1917, embora registrado em 1916), outra data engorda a lista de efemérides relacionadas ao gênero: os 30 anos da morte de Clementina de Jesus. A cereja do bolo que marca a data é o livro Quelé, a voz da cor: biografia de Clementina de Jesus, de Felipe Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz (Civilização Brasileira). Tudo começou como um trabalho de conclusão de curso na faculdade, mas depois de seis anos de pesquisa virou uma obra que preenche um vazio na história da música brasileira de influência africana. A história de uma negra pobre, que deu duro na vida e venceu num campo que não escolheu para jogar. Foi nele colocada pelo acaso e não fez feio. 

Nascida na cidade fluminense de Valença, no dia 7 de fevereiro de 1901, neta de escravos, filha de um operário da construção civil, que tocava viola e jogava capoeira, com uma parteira-rezadeira vindos de Minas Gerais, Clementina cresceu no Rio de Janeiro, para onde se mudou com a família ainda criança. Desde pequena, Quelé, apelido que ganhou ainda na cidade natal, teve contato com as mais diversas formas de manifestação musical folclórica, religiosa e popular. Das profanas rodas de samba ao ecumênico canto religioso, que ia do ponto de candomblé à ladainha católica, passando por manifestações intermediárias, como o jongo, que têm um pé na terra e outro no mistério. Morou em Jacarepaguá, na Zona Oeste, mudando-se depois para Osvaldo Cruz, terra de sambistas na Zona Norte do Rio. Dançou o pastoril – auto de Natal que lembra a visita dos Reis Magos ao menino Jesus – e organizou procissões. Conviveu com Heitor dos Prazeres, Donga, João da Baiana e Pixinguinha. Testemunhou a criação da Portela, e frequentou rodas de samba nos quintais do subúrbio, Cidade Nova, Saúde, Gamboa e Praça Onze, a chamada Pequena África, ponto de encontro de sambistas e capoeiras. Conheceu a famosa baiana Tia Ciata, cuja casa era frequentada por pioneiros do batuque urbano carioca. Mãe solteira aos 20 anos, morou também no morro da Mangueira, levada pelo segundo marido, Albino Pé Grande, com quem se casou em 1950. Integrou-se à verde e rosa, na qual desfilou na ala das baianas, e na Velha Guarda.

Em 1964, Clementina trabalhava como empregada doméstica no Grajaú e cantava nas horas vagas, quando, aos 63 anos, foi “achada” pelo poeta Hermínio Bello de Carvalho. Pelas mãos de Hermínio, se apresentou como atração no famoso Zicartola. Num desafio maior, Hermínio a apresentou, acompanhada pelas cordas de Cesar Faria, pai de Paulinho da Viola, no recital O Menestrel, no Teatro Jovem, na praia de Botafogo. Clementina tomou uma garrafa de vermute para criar coragem, entrou no palco e o sucesso foi imediato. Saiu aplaudidíssima. No ano seguinte, integrou o elenco do musical Rosa de Ouro, ao lado de cobras criadas como Elton Medeiros, Aracy Cortes, Paulinho da Viola, Anescarzinho do Salgueiro e Nelson Sargento, espetáculo que resultou em dois álbuns. Aquele vozeirão indomável contrastava com a refinada delicadeza de Aracy, num contraponto que muito bem representa a riqueza da nossa música. Em pouco tempo era escalada para representar o Brasil no Festival Mundial de Arte Negra, no Senegal, e num show em Cannes, na França. Em 1968, gravou com Pixinguinha e João da Baiana o disco Gente da Antiga, com composições do mestre Pixinguinha, João da Baiana e velhos temas folclóricos que aprendera ainda na roça. Nas décadas seguintes gravou mais cinco álbuns solo e participou de novas gravações coletivas, sempre recuperando com sua voz de terreiro o canto ancestral de sua gente, ao qual mesclava novas composições de autores modernos. É antológica sua versão para Incompatibilidade de Gênios, de João Bosco e Aldir Blanc.

Nelson Sargento, Clementina e Elton Medeiros

Voz cavernosa, grave e potente, quando entrava no palco, toda de branco, pele muito negra, Quelé parecia uma entidade flutuando em direção ao microfone, como ilustra a capa do LP Marinheiro Só (1973). Chamaram-na de Rainha Ginga, a valente angolana que enfrentou os portugueses no século XVI, agora renascida nos campos de café do Brasil. “Clementina era uma negra banto. Aliás o canto dela era o canto de uma negra banto”, diz em depoimento no livro o compositor Elton Medeiros. Em 2000, antecipando-se ao centenário de seu nascimento, a EMI editou com patrocínio da Petrobras uma caixa com nove de seus álbuns. Num projeto,  novamente, de Hermínio Bello de Carvalho, a caixa é composta pelos dois volumes do Rosa de OuroClementina de JesusGente da Antiga (com Pixinguinha e João da Baiana), Mudando de Conversa (com Cyro Monteiro e Nora Ney), Fala MangueiraMarinheira SóClementina de Jesus (com Carlos Cachaça) e Clementina e ConvidadosA importância de Clementina foi reconhecida em 1983 pelo então vice-governador e secretário da Cultura fluminense, o antropólogo Darcy Ribeiro, que reuniu um time de primeira da música popular para homenageá-la no Teatro Municipal, numa noite de gala para a qual alguns torceram o nariz. Para Darcy, “Clementina é a voz dos milhões de negros desfeitos no fazimento do Brasil”.

Quelé, uma entidade no palco


Quando Quelé surgiu nos palcos, o Brasil vinha da era dos vozeirões, Carlos Galhardo, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Angela Maria e Dalva de Oliveira ainda ocupavam as ondas do rádio, ofuscados pela Bossa Nova. Clementina era um bicho estranho aos dois universos. A partir dela, gravadoras, artistas e público passaram a receber com maior tolerância as vozes fora da curva, abrindo caminho para que compositores se arriscassem como intérpretes de suas canções. Clementina abriu caminho para que gente como os compositores Synval Silva, Cartola e Nelson Cavaquinho pudesse botar voz em seus  próprios sambas. Clementina morreu no dia 19 de julho de 1987, de derrame, aos 86 anos. Ela foi pioneira, graças à visão de Hermínio, um grande descobridor e incentivador de talentos de todos os matizes. Seu legado é significativo no contexto da contribuição dos negros para a música popular brasileira. A Rainha Ginga não deixou sucessora, mas sua saga, sociologia à parte, está bem contada nesse livro que chega agora às livrarias.

VEJA, 22 de fevereiro de 2017

Discografia

Rosa de Ouro 1(1965)

Rosa de Ouro 2 (1967)

Clementina de Jesus (1966)

Gente da Antiga (1968)

Marinheiro Só (1973)

Clementina, cadê você (1970)

Fala Mangueira (1968)

Mudando de Conversa (1968)

Clementina e Convidados (1979)

Clementina - de Jesus - convidado especial: Carlos Cachaça (1975)


sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

NOEL ROSA

O poeta maior


Por Julio Cesar Cardoso de Barros

No dia 11 de dezembro de 2010 comemoramos o centenário de nascimento de Noel Rosa, um dos mais prolíficos compositores brasileiros, nome maior do samba, autor de músicas que nunca saem de pauta e resistem geração após geração, sendo gravadas e regravadas infinitamente, como Gago Apaixonado, Com Que Roupa?, Três Apitos, Feitio de Oração, Feitiço da Vila, Conversa de Botequim, Palpite Infeliz, Último Desejo, Pastorinhas, Positivismo, Pierrô Apaixonado entre as cerca de 250 canções que compôs em sua curta existência de 26 anos. Noel foi boêmio, mulherengo e abusava do álcool. A vida desregrada afetou tanto sua saúde quanto sua situação financeira, o que o obrigou certa vez a empenhar o próprio instrumento de trabalho, seu violão, para levantar dinheiro. Quase nada se sabe da infância de Noel Rosa. Um pouco dessa infância é descrito no livro Noel, O Menino da Vila, lançado em 2010, que reúne ficção e realidade, escrito a quatro mãos pelos irmãos Clóvis e Márcia Bulcão, com capa e ilustrações da artista plástica curitibana Iara Teixeira:

“Como muitos meninos, Noel cresceu saboreando todas as delícias de Vila Isabel. Era livre para brincar na rua, empinar pipa, jogar botão, pegar o bonde andando e, em junho, sempre soltava balão. Adorava subir na Pedreira do Simões e lá do alto gritar para o mundo: 
– Ale-lê-oooo. 
Apesar de ser o menor e o mais magro da turma, Noel sempre liderava os amigos na hora das brincadeiras. Corria de vento em popa, pulando como sapo, escapando até de praga de urubu. E quando implicavam com seu tipo físico mirradinho, rebatia achando graça: 
– Quem foi que disse que eu era forte? Nunca pratiquei esporte. 
Mas não era só por ser magrinho que o provocavam. Como tinha o queixo muito pra dentro, acabou ficando conhecido na Vila por Queixinho.”  


Dá para imaginar as peripécias do garoto num Rio de Janeiro de confeitarias elegantes e morros já apinhados de gente pobre, que perambulava pelas ruas como pregoeiros, carregadores, estivadores e outros expedientes, na luta pela sobrevivência. Um Rio de sambas e batucadas, de chorinho e serenatas. O que se sabe é que Noel nasceu na Vila Isabel e lá viveu na mesma casa da Rua Teodoro da Silva, por 26 anos. Era filho de uma professora com um comerciário, e tinha um irmão, Hélio, quatro anos mais novo que ele. O pai se suicidaria mais tarde, durante internação num sanatório para doenças mentais. A mãe, que lecionava em casa, ensinou-lhe as primeiras letras. Ele completou os estudos básicos nos Colégios Maisonnete e São Bento, onde estudou até os 18 anos. Cursou a faculdade de Medicina até o terceiro ano. Da arte de Hipócrates, restou como herança o samba Coração, no qual diz: Coração/Grande órgão propulsor/Transformador do sangue/Venoso em arterial. Já era compositor respeitado, e decidiu-se pela carreira artística, num mercado que apenas engatinhava. Aos 23 anos casou-se com Lindaura, de 13, a quem engravidara. Ela perdeu o bebê e ele não deixou herdeiros.


    O violão: companheiro de orgia

Aos 24 anos, a vida promíscua que levava, entre a zona boêmia e a zona do meretrício havia minado sua saúde. Com os dois pulmões afetados pela tuberculose, internou-se para tratamento em Belo Horizonte, primeiro, e depois em Nova Friburgo, na região serrana do Estado do Rio e em Barra do Piraí, no Vale do Paraíba. Apesar da doença e das internações, ele nunca abandonou a noite, apresentando-se como cantor tanto na capital mineira quanto na serra fluminense, e frequentando os bares das cidades. Seguiram-se outras internações, mas os hábitos de vida do poeta o haviam condenado. Ricardo Cravo Albin descreveu assim, sua morte, ocorrida em 1937, quando contava escassos 26 anos: “Morreu na noite do dia 4 de maio, enquanto em frente à sua casa comemoravam o aniversário de uma vizinha numa festa em que tocavam suas músicas. Diversas versões sobre sua morte foram publicadas em diferentes jornais e biografias, onde se fez referência até a um ataque cardíaco. Ao seu enterro compareceram muitas personalidades da música e do rádio. À beira de seu túmulo, Ary Barroso fez um discurso emocionado, homenageando o amigo e parceiro”. Noel viveu intensamente, bebeu demais, farreou, enveredou na orgia. Não foram poucas as vezes em que subiu o morro e por lá permaneceu, cantando samba, ouvindo os poetas do lugar e bebendo. É parte do folclore da MPB as carraspanas que tomou, a ponto de ter sido cuidado por Deolinda, mulher de Cartola, que chegava a lhe dar banho e colocá-lo na cama, como se se trata-se de um filho. Na sua Vila, no Estácio de Ismael Silva ou no morro da Mangueira, de Cartola, o samba era sempre acompanhado do álcool, em doses industriais. 

    Lindaura chora no túmulo do marido
   
Uma carreira curta e brilhante
Noel de Medeiros Rosa foi um músico precoce, cujo talento saltou aos ouvidos de todos que o cercavam ainda durante a infância. Aprendeu a tocar violão com o pai e amigos, bandolim aprendeu por conta própria, e ainda criança fazia serenatas pelo bairro. Sua paixão pela música popular, que era grande, aumentou depois que conheceu Sinhô, o Rei do Samba, que tomou-se de amizade pelo garoto. Em 1929 Noel juntou-se a Almirante, Braguinha, Alvinho e Henrique Brito para formar o Bando de Tangarás, que se apresentava em festas e no rádio. Com o Bando gravou ritmos regionais, que dominavam o incipiente mercado. Eram sons nordestinos e sertanejos, como a embolada, a toada, o cateretê e o maxixe. No mesmo ano, começou a compor. É dessa época a embolada Minha Viola: Minha viola/Tá chorando com razão/ Com saudade da marvada/ Que roubou meu coração. No ano seguinte, gravou Com Que Roupa, seu primeiro sucesso. Daí por diante as músicas saíram de seu violão aos borbotões. Foi descoberto pelos grandes intérpretes da época e gravado com sucesso ao longo de toda a sua curta vida restante. Suas canções, de melodias belas e letras que falavam do cotidiano da gente do Rio numa linguagem simples, direta, porém inspirada, eram requisitadas para o teatro de revista, para os musicais de auditório nas emissoras de rádio – todas o queriam na programação, chegou a ter emprego fixo no programa Casé, da Rádio Phillips – e para shows em casas de espetáculos. Seu talento para arrancar o riso em letras que narravam as vicissitudes da vida e as armadilhas do cotidiano encantava o público, a crônica e os pares.

    Com Francisco Alves, Carmen Miranda e Almirante no estúdio da Rádio Tupi

Mas o sucesso não deslubrou o jovem compositor, assíduo freguês do famoso Café Nice, na Avenida Rio Branco, 174, esquina com Bittencourt da Silva, no Centro, mas que não deixava de frequentar os cafés simples de sua Vila, onde mantinha contato com os sambistas dos morros da Zona Norte da cidade, com os quais descobriu um novo jeito de compor e cantar o samba. Menos corta-jaca e mais sincopado. Desse contato surgiu o estilo que consagrou Noel. Foi parceiro de gente do asfalto, como Custodio Mesquita (Prazer em conhecê-lo), Orestes Barbosa (Positivismo), Nássara (Retiro da Saudade), Lamartine Babo (A-B-Surdo e A, E, I, O, U), João de Barro (Linda Pequena e Pastorinha), Hervé Cordovil (Leite com Café e Triste Cuíca), Vadico (Feitiço da Vila e Conversa de Botequim) e Ary Barroso (Estrela da Manhã e Mão no Remo). De de gente do morro, como Ismael Silva (Para Me Livrar do Mal), Wilson Batista (Deixa de Ser Convencido), Cartola (Não Faz Amor), Antenor Gargalhada (Agora Eu Fiquei Mal) e Heitor dos Prazeres (Pierrô Apaixonado), e da velha guarda, como Donga (Não Há Castigo). E sozinho fez exeplares inesquecíveis de nosso cancioneiro: Fita Amarela, Cinema Falado, Gago Apaixonado, Onde Está a Honestidade, Palpite Infeliz, Rapaz Folgado, Último Desejo e Três Apitos.


Noel fez dezenas de parcerias com Francisco Alves, o Rei da Voz. Mas é sabido que Chico Viola, como era também chamado, tinha costume de comprar músicas e de gravar canções com a condição de ganhar sua parceria. Assim, seu nome aparece em A Razão Dá-se a Quem Tem, Adeus, Assim, Assim, Esquina da Vida e outras. Algumas fruto de parcerias reais, outras, de sociedade duvidosa. Mas a importância de Chico Alves na carreira do compositor é fundamental. Em 1932, ele gravou os sambas Ando Cismado e Nuvem que Passou (com Ismael Silva) e convidou Noel para integrar seu trio Bambas do Estácio. Com ele Noel excursionou, fez shows e emplacou sucessos no rádio. Mário Reis foi outro de seus grandes intérpretes. Com sua voz comedida e seu jeito cool, Reis gravou Fita Amarela e Vai Haver Barulho no Chatô, em 1933. Outro grande intérprete de Noel foi Silvio Caldas, que dele gravou Pra Que Mentir. Aracy de Almeida é apontada como sua grande intérprete feminina, voz que consagrou Rapaz Folgado e tantas outras. Mas Aracy parece ter-se firmado como uma intérprete roseana depois da morte do poeta, que segundo Ricardo Cravo Albin considerava Marília Barbosa, que lhe gravou Quem Dá Mais? e Coração, no seu disco de estréia, em 1932, como a preferida do poeta. Seus sambas, marchas e marchinhas fizeram sucesso também no Carnaval, em parcerias nobres com os reis do gênero, como Braguinha (Linda Pequena e Pastorinhas), Lamartine Babo (A, E, I, O, U) e em composições solo, como Até Amanhã, grande sucesso no Carnaval de 1933.

    A polêmica histórica
    A briga em disco da Odeon: ilustração de Nássara

A polêmica com Wilson Batista marcou a carreira de Noel, mas a briga funcionou como o que hoje seria considerado uma jogada de marketing. Tudo começou em 1933, quando Noel respondeu com o samba Rapaz Folgado, na voz de Aracy de Almeida, à apologia da malandragem feita por Wilson Batista em Lenço no Pescoço, gravado por Silvio Caldas.

Wilson cantou:

Meu chapéu do lado

Tamanco arrastando

Lenço no pescoço

Navalha no bolso

Eu passo gingando

Provoco e desafio

Eu tenho orgulho

Em ser tão vadio



Noel replicou:


Deixa de arrastar o teu tamanco

Pois tamanco nunca foi sandália

E tira do pescoço o lenço branco

Compra sapato e gravata

Joga fora esta navalha que te atrapalha



Rose Maia canta Rapaz Folgado:


Wilson treplicou:

Você que é mocinho da Vila

Fala muito em violão

Barracão e outros fricotes mais

Se não quiser perder

Cuide do seu microfone e deixe

Quem é malandro em paz

Injusto é seu comentário

Falar de malandro quem é otário

Mas malandro não se faz

Eu de lenço no pescoço desacato
E também tenho o meu cartaz



Noel não respondeu e a coisa poderia ter parado por aí, não fosse Batista encafifar com o sucesso de Feitiço da Vila, parceria de Noel com Vadico, que fazia uma apologia escancarada aos encantos da Vila Isabel e de seus poetas:


Lá, em Vila Isabel

Quem é bacharel

Não tem medo de bamba

São Paulo dá café

Minas dá leite

E a Vila Isabel dá samba


Orlando Silva canta Feitiço da Vila:

Cheio de dor-de-cotovelo, Batista atacou com Conversa Fiada:


É conversa fiada dizerem

Que o samba na Vila tem feitiço

Eu fui ver para crer

E não vi nada disso

A Vila é tranquila

Porém eu vos digo: cuidado!

Antes de irem dormir

Dêem duas voltas no cadeado



O ataque à Vila pareceu a Noel um despropósito. Com trânsito em todos os morros da Zona Norte e bairros da Cidade Nova, foi diplomático em Palpite Infeliz, com Aracy de Almeida:



Quem é você que não sabe o que diz?

Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!

Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira

Oswaldo Cruz e Matriz

Que sempre souberam muito bem

Que a Vila Não quer abafar ninguém

Só quer mostrar que faz samba também


João Gilberto canta Palpite Infeliz (de quebra, um passeio de bonde pelo velho Rio):

À diplomacia de Noel, Wilson Batista respondeu com grosseria inominável, ressaltando o problema físico de Noel, cujo queixo trazia sequelas de um parto feito a fórceps. E assim atacou, em Frankenstein da Vila:

Boa impressão nunca se tem

Quando se encontra um certo alguém

Que até parece um Frankenstein

Mas como diz o rifão: por uma cara feia

Perde-se um bom coração

Entre os feios és o primeiro da fila

Todos reconhecem lá na Vila

Essa indireta é contigo

E depois não vá dizer

Que eu não sei o que digo
Sou teu amigo



Ninguém se atreveu a gravar algo tão ofensivo, mas o samba correu de boca em boca e foi cantado nas rádios. Não contente com o ataque cruel, Batista deu um golpe de misericórdia em Terra de Cego, que ninguém gravou, também:



Perde a mania de bamba

Todos sabem qual é

O teu diploma no samba

És o abafa da Vila, eu bem sei

Mas na terra de cego

Quem tem um olho é rei



A polêmica não prosseguiu porque Noel deu-lhe um final civilizado. Botou nova letra no samba de Batista, encerrando a polêmica. Terra de Cego ganhou novo título, Deixa de Ser Convencido, e ficou assim:



Deixa de ser convencido

Todos sabem qual é

Teu velho modo de vida

És um perfeito artista

Eu bem sei

E no picadeiro desta vida

Serei o domador

serás a fera abatida




Noel sobe o morro

Convencionou-se que o primeiro samba gravado no Brasil foi Pelo Telefone, de Mauro de Almeida e Donga cantado por Baiano. É um marco, mas logicamente outras músicas do gênero já existiam. Eram o resultado da influência do maxixe e do samba-de-roda que os baianos trouxeram para o Rio e cantavam nas festas das tias da zona portuária da Gamboa e da Saúde, num movimento que depois se espalhou pela Cidade Nova, com a modernização do centro e a derrubada das moradias precárias onde viviam os negros. Pelo Telefone era mais um maxixe que o samba como o conhecemos. O samba moderno é uma evolução surgida nos morros da Mangueira e do Salgueiro e nos bairros do Estácio e Vila Isabel, fruto da troca entre sambistas das favelas e do “asfalto”. Compositores da cidade, que subiam o morro para batucadas memoráveis e compositores do morro desciam para frequentar os cafés, que eram pontos de encontro de artistas, criaram um novo modo de cantar o samba. Baiaco, Brancura, Bide, Ismael Silva e muitos outros autores já almejavam, por essa época, a profissionalização. O primeiro samba de Ismael Silva, gravado por Francisco Alves em 1927 (Me Faz Carinho), é um marco do nascimento do samba carioca, que resiste até hoje. Um exemplar esplêndido dessa safra de sambas é Se Você Jurar. Noel se interessou pelo samba que era feito nos morros que rodeavam sua Vila, pelo samba do Estácio de Ismael Silva, pelo samba carioca por excelência, aquele que rompeu com o maxixe e que coube a ele dar roupagem definitiva.


No livro O Morro e o asfalto no Rio de Janeiro de Noel Rosa, de João Máximo, lançado no início de 2010 pela editora Aprazível para comemorar o centenário do artista da Vila Isabel, é esclarecedor e ajuda a entender o samba carioca. O livro traz 180 fotografias e um CD com 14 músicas interpretadas pelo próprio Noel Rosa, Mário Reis e Aracy de Almeida. Diz Máximo: “Não há como provar mas pode-se deduzir como e porque foi o samba do Estácio que Noel Rosa abraçou. Sua Vila Isabel era cercada de morros. Macacos, Mangueira, Telégrafo, Salgueiro, além de ser bairro de meio de caminho entre os subúrbios e o Centro. Noel nunca andou pela Cidade Nova, a não ser pelas ruas do Mangue, naturalmente com outros fins. Seus contatos com Pixinguinha e a turma da Pequena África só se dariam quando eles passassem a se encontrar nos estúdios de gravação nos aquários das rádios, nos palcos de teatro, todos já profissionais. Já com Canuto, Pururuca, Antenor Gargalhada e, logo depois, Ismael Silva, Bide, Lauro dos Santos, o Grandim, Ernani Silva, o Sete, Zé Pretinho, Manoel Ferreira e Angenor de Oliveira, o Cartola — negros que viviam nos morros ou estavam intimamente ligados às harmonias e ritmos do samba –, Noel Rosa não só conviveu, como também, detalhe importante, fez-se parceiro de todos eles. Definidor porque único e determinante. Único na medida em que nenhum outro branco, de classe média, com passagem por universidade, entregou-se a colaborações inter-raciais como o Noel dos três anos seguintes à sua saída do Bando de Tangarás. Observe-se, no rastro daquelas colaborações, que é quase possível traçar o roteiro — mapa da mina — dos morros cariocas visitados por ele em busca de samba,  Macacos, Ramos, Serrinha,Salgueiro, Mangueira, Favela, São Carlos, redutos dos dez sambistas negros enumerados no parágrafo anterior. Determinante se se tiver em conta que foi com base nessas parcerias, uns aprendendo com os outros, pedras brutas sendo buriladas, que Noel vai demarcar o caminho musical que seguirá até o fim: o do samba.”

Esse processo de rompimento com a forma maxixada de cantar e tocar o samba não foi simples. E Noel teve papel importante nessa guinada. É o próprio João Máximo quem explica: “O assunto é menos simples do que parece. Complica-se entre outros motivos, porque, em quase todos os discos de época – tanto os de Noel como os dos compositores de morro, com destaque para os do Estácio –, os sambas tinham sotaque amaxixado, as orquestras que acompanhavam cantores como Francisco Alves e Mário Reis entregues a baixarias típicas do maxixe. Quer dizer, sambas autenticamente do Estácio tornados híbridos pelos músicos e maestros  que, até ali, só conheciam a música da Cidade Nova. O importante é que duas passam a ser as principais contribuições de Noel Rosa à afirmação do samba como a música do Rio: uma, sua já abordada ligação com os sambistas de morro ( geralmente, com ele acrescentando segundas partes, música e letra, às primeiras que os sambistas lhe mostravam); e a outra, a reinvenção da lírica da música popular, tanto nos sambas em forma de crônica, sobre episódios e personagens do cotidiano, como, muito especialmente, na canção romântica. Seria a partir dali que, rompendo com os arroubos, preciosismos, pernosticismos mesmo de letristas derramados do tipo Catulo da Paixão Cerarense e Cândido das Neves, o Índio, Noel Rosa reafirmaria com brilho que qualquer tema pode ser cantado em música popular. E com uma linguagem para ser entendida pelo povo, pelo homem comum. O humor, a crítica, a ironia, a mentira, a vilania, a injustiça, a desonestidade, o dinheiro e a falta dele, os joões-ninguém e as marias-fumaças da cidade, tudo cabia em tudo inclusive no amor, e não apenas, como se acreditava até então, na liberada cantiga carnavalesca”.

    Noel Rosa: entre o morro e o asfalto

Noel subiu a ladeira para beber a água da bica do samba do morro. Quando desceu, não era mais o cantor do grupo Bando de Tangarás, com suas ingênuas canções regionais, chapéu de palha e lencinho no pescoço. Era um compositor que se tornaria um dos melhores que este país conheceu. Justa a homenagem que o erudito Radamés Gnatalli, autor de arranjos magistrais para músicas populares, lhe fez em 1972, ao compor o Concerto para Noel Rosa, para piano e orquestra, em três movimentos: Allegro (Pastorinhas); Adagio (Em Feitio de Oração); e Allegro Moderato (Conversa de Botequim), gravado com Arthur Moreira Lima ao piano, doze violinos, quatro violas, quatro violoncelos, dois contrabaixos, duas flautas, um flautim, dois oboés, corne inglês, fagote, trompa, prato, caixa e tímpano. Fraque e cartola para o menino da Vila.

Joel de Almeida e Gaúcho cantam Pierrô Apaixonado: