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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

CLARA NUNES

A mineira guerreira


Por Julio Cesar Cardoso de Barros

No dia 5 de fevereiro de 2011, a Portela inaugurou o busto de Clara Nunes, na quadra da escola, localizada na Rua Clara Nunes, 81, em Madureira. Uma merecida homenagem àquela que foi uma das maiores cantoras que este país conheceu, e uma portelense de primeira linha. A voz doce e afinadíssima de Clara Nunes já seria o suficiente para colocá-la no hall da fama dos artistas que mais contribuíram para o engrandecimento da música popular brasileira. Mas ela ganha importância num outro campo. Ao lado de BethCarvalho, ela foi de grande importância no resgate de velhos compositores esquecidos, no incentivo aos jovens autores que iam surgindo e na valorização dos poetas das escolas de samba, da velha e da jovem guarda dos terreiros cariocas. Fez-se apresentar acompanhada de músicos vindos daquele ambiente, como Darcy da Mangueira, compositor e violonista, do conjunto Nosso Samba, formado por sambistas verdadeiros e de muitos outros músicos anônimos, os quais colocou lado a lado com artistas já consagrados. Conheça um pouco mais dessa figura tão importante na história da MPB e da escola de Madureira e Osvaldo Cruz.


Clara canta Portela na Avenida, de Mauro Duarte e P. C. Pinheiro):

A mineira Clara Francisca Gonçalves nasceu no antigo distrito de Cedro – hoje município de Caetanópolis - em Paraopeba, Minas Gerais, no dia 12 de agosto de 1942. E morreu no Rio, no dia 2 de abril de 1983, vítima de complicações durante uma cirurgia. Filha de um violeiro de Folia de Reis, ela ficou órfã muito pequena. Aos dez anos, o DNA musical se manifestou e ela ganhou um concurso de canto de sua cidadezinha, com a guarânia Recuerdos de Ypacaraí, um grande sucesso do rádio. Foi operária tecelã em sua terra natal e aos 16 anos mudou-se para Belo Horizonte, onde cursou o Normal e participou do coral a igreja de seu bairro. O rádio por essa época tocava Ângela Maria, Elizeth Cardoso, Carmem Costa, Dalva de Oliveira e outras grandes intérpretes dos anos dourados. Na capital mineira, participou de programas de calouros, sob o nome de Clara Francisca. Nos anos 60, namorando um irmão do roqueiro brazuca Eduardo Araújo, trocou o nome para Clara Nunes e foi apresentada ao meio artístico. Depois de participar do concurso A Voz de Ouro ABC, classificando-se na fase mineira e pegando um terceiro lugar na final, em São Paulo, foi contratada pela Rádio Inconfidência de Belo Horizonte e dedicou-se paralelamente à noite de BH, cantando em night clubs locais. A fama que foi adquirindo lhe valeu em 1963 a conquista de um espaço nobre na TV local, onde passou a comandar o programa Clara Nunes Apresenta, por onde passaram grandes nomes da MPB. Gravou pela primeira vez num pau-de-sebo, LP com vários cantores, gravado em Minas pela Rádio Inconfidência, em 1965.

Clara canta, de Candeia, O Mar Serenou:

No mesmo ano mudou-se para o Rio, onde se apresentou em programas de música ao vivo na TV e participou dos filmes Na Onda do Iê-Iê-Iê (1966), Carnaval Barra Limpa (1967) e Jovens Pra Frente (1968), apresentando números musicais que iam de marchinhas carnavalescas a baladinhas românticas típicas do movimento jovem, ao lado de nomes como Ed Lincoln, Wanderley Cardoso, Emilinha Borba, Ângela Maria, Altemar Dutra, Marlene, Rosemary, Jair Rodrigues e Dircinha Batista. Era a fina flor dos nossos melhores intérpretes, do romântico à Jovem Guarda. Contratada pela Odeon, sua gravadora para a vida toda, lançou o primeiro álbum em 1966, A Voz Adorável de Clara Nunes, no qual predominavam as canções românticas, boleros e sambas-canção. Seu namoro com esses gêneros durou pouco. Logo ela entrava naquele que seria o rumo definitivo de sua carreira. Sob influência de Adelzon Alves, um excelente produtor de discos e apresentador de programas de samba, Clara se interessou cada vez mais pelo ritmo. Seu segundo disco, Você Passa e Eu Acho Graça, marca sua estréia vigorosa no terreiro do samba, com a música de Ataulfo Alves e Carlos Imperial que deu título ao álbum registrando o primeiro sucesso de sua carreira. Nas duas dezenas de discos que gravou a partir daí deu destaque a compositores ligados às escolas de samba, como Candeia, e a sambistas do asfalto, como João Nogueira e Eduardo Gudin, parceiros de seu futuro marido,Paulo Cesar Pinheiro. Participou dos grandes festivais de música popular, que dominaram a audiência das TVs na década, defendendo sambas de cobras como EltonMedeiros e iniciantes como Paulinho da Viola.

Clara Nunes canta Conto de Areia, de Romildo e Toninho Nascimento:

Clara se encantou com a música brasileira que foi conhecendo nos terreiros e quintais deste Brasil. Fez pesquisas em busca de conhecimento de nossas raízes musicais, viajou pelo país, foi à África e fez a cabeça no Candomblé. Os anos 70 vão encontrá-la totalmente entregue ao ritmo. Em 1972 fez grande sucesso com Ilu Ayê, um belo samba-enredo de Norival Reis que a Portela – escola à qual se entregaria de corpo e alma – levou para a passarela no Carnaval naquele ano. Mas outro samba do disco também assaltou as ondas do rádio: o embalado Ê Baiana (de Baianinho, da Em Cima da Hora). As escolas de samba estavam na moda e Clara navegou bem na maré. Da pequena escola de samba Tupi de Brás de Pina, ela gravou o samba-enredo Seca no Nordeste, apresentado no Carnaval de 1961, na Praça Onze. Além dos sambas de escola, gravou com enorme sucesso sambas de terreiro de Candeia, sambas de “calçada” de João Nogueira, canções de Caymmi, Caetano Veloso, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Wilson Moreira, Nei Lopes, Cartola e tantos outros grandes compositores. Tornou-se uma diva da MPB, fez turnês pelo país e pelo exterior. O auge de sua carreira talvez tenha começado com o lançamento do LP Alvorecer, em 1974, do qual se extraíram os sucessos estrondosos Contos de Areia, da dupla Romildo e Toninho Nascimento, e Menino Deus, de Mauro Duarte e P. C. Pinheiro. Nesse mesmo ano, participou do espetáculo Brasileiro Profissão Esperança, de Paulo Pontes, ao lado de Paulo Gracindo, resultando daí um disco fantástico.

Disco fantástico: parceria com Paulo Gracindo


Clara era um sucesso fonográfico, destruindo um mito de que no Brasil mulher não vendia discos. Ainda mais cantando samba. Pois Clara se tornou a maior vendedora de discos da EMI-Odeon. Clara Nunes na EMI e Beth Carvalho na RCA desmentiam os marqueteiros das gravadoras, as duas trafegando na mesma faixa de mercado numa rivalidade saudável, em que a voz rouca e aconchegante de Beth Carvalho contrastava com a exuberância de Clara, mostrando que não há empecilho vocal para as boas intérpretes do samba. Logo as gravadoras esqueceram da falsa verdade e tentaram sem muito sucesso lançar novas Claras no mercado. Mas Clara era única. Em 1976 ela gravou o disco Canto das Três Raças, que daria nome ao show que inaugurou seu Teatro Clara Nunes, no Rio, projeto em parceria com Paulo Cesar Pinheiro. Seus shows eram sempre um sucesso de fechar o comércio. Em 1977, Clara vendeu 800 000 cópias do LP Forças da Natureza. Um recorde nacional. Por essa época, ela, Beth Carvalho e Alcione eram absolutas em termos de venda. Garantia de lucro para suas gravadoras. E faziam shows sem parar, numa agenda alucinante, que ia dos grandes teatros às quadras de escolas de samba de São Paulo e Rio de Janeiro. Sempre com casa cheia. Eram as três damas do samba, como Martinho da Vila, João Nogueira e Roberto Ribeiro dominavam do lado masculino. Em 1981, Bibi Ferreira foi chamada a dirigir Clara Mestiça, uma mostra da importância que ela havia adquirido no showbiz nacional. Muito profissional e perfeccionista, Clara Nunes fez discos impecáveis, tendo sido 16 de seus álbuns relançados em CD, em 1996, depois de remasterizados nos estúdios de Abbey Road.


No Japão, Canto das Três Raças, de Mauro Duarte e P. C. Pinheiro):

1975: o casamento com P. C. Pinheiro

Seu último trabalho fonográfico foi o LP Nação, de 1982, no qual se destacou o samba exatação Serrinha, homenagem aos velhos compositores da escola Prazeres da Serrinha, de Madureira, de onde saíram os sambistas que fundaram a Império Serrano. Carnavalesca amada pelos sambistas, ela não viu o Carnaval seguinte. Esteve em coma por 28 dias, até a quarta-feira de cinzas de 1983, vítima de um choque anafilático, uma rara reação alérgica à anestesia, ocorrência que pode se dar uma vez em 20 000 operações. Com o fim do Carnaval daquele ano, morria Clara Guerreira. A Portela, que agora inaugura um monumento em sua homenagem, não cansa de relembrá-la. Deu seu nome à rua onde está instalado o Portelão, a quadra de sua escola em Madureira. E em 1984, inaugurou o Sambódromo com o enredo Contos de Areia, uma homenagem a Paulo da Portela, o fundador, a Natal, o legendário presidente de um braço só, e a Clara Nunes, a Guerreira. Um nome a ser lembrado com carinho, como faz agora sua Portela querida, inaugurando-lhe um monumento que a imortaliza no terreiro do samba.


Nação: último disco

VEJA.COM 13/02/2011

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

DIOGO NOGUEIRA

Filho de bamba


Por Julio Cesar Cardoso de Barros

O sambista Diogo Nogueira grava seu segundo DVD na quinta-feira, dia 23 (de julho de 2010), durante show com convidados no Vivo Rio, na Avenida Infante Dom Henrique, 85, Parque do Flamengo. No repertório, músicas de seu segundo CD Tô Fazendo a Minha Parte. Com destaque para a faixa bônus do disco, Malandro é Malandro, Mané é Mané (de Neguinho da Beija-Flor, gravada anteriormente por  Bezerra da Silva), que fez grande sucesso ao ser incorporada à trilha sonora da novela Caminho das Índias. Tem também Presente de Deus, de Fred Camacho e Alceu Maia, um samba rasgado para agradar nos terreiros*. Sou Eu, de Ivan Lins e Chico Buarque, já é mais para salão, é um samba bom de ouvir e de dançar a dois. O compositor Arlindo Cruz e o baterista e cantor Wilson das Neves, duas cobras criadas, fizeram Não Dá, samba que permite a Diogo exibir seus recursos vocais*.
*O samba acabou não entrando no novo DVD.

Sou Eu: segundo DVD ao vivo

 Diogo Nogueira é um carioca de 29 anos, filho do cantor e compositor João Nogueira (falecido em 2000), neto de João Batista Nogueira, um músico que tocou com Noel Rosa e era amigo de Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Donga e João da Baiana.

Primeiro DVD ao vivo

A mãe, Angela Maria Nogueira e a tia Gisa Nogueira são compositoras e o primo Didu Nogueira é cantor. Em 2007, Diogo lançou seu primeiro disco e DVD, Diogo Nogueira ao Vivo, gravado no Teatro João Caetano (RJ), com músicas suas e antigos sucessos como Poder da Criação, de seu pai, e Vazio,  de Nelson Rufino, gravado originalmente por Roberto Ribeiro, nos anos 70.

Diogo canta Poder da Criação na festa de Beth Carvalho:

Em 2008 Diogo ganhou o prêmio Multishow de Música Brasileira na categoria revelação. No ano passado, gravou Tô Fazendo a Minha Parte, o disco que vai servir de base para o DVD, com algumas músicas inéditas, de sua autoria e de figurões da MPB e de bambas do samba, como Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho e Almir Guineto. Paralelamente aos shows e gravações, Diogo conquistou em sua ainda curta carreira o tetra-campeonato do samba-enredo na Portela – o que não é pouco – e ganhou um programa na TV Brasil: Samba na Gamboa.

Tô Fazendo a Minha Parte: segundo CD

O pai, fundador do Clube do Samba e um dos mais expressivos e populares cantores dos anos 70 e 80, era um tradicionalista. Criticou a invasão do samba pelos cinturas grossas, no samba Vem Quem Tem (1975), em que dizia: “Ela desfila na avenida/ Diz ser a preferida, mas não é/ Diz que tem certa veia de sambista/ Mas a tal artista/ Nem mesmo sabe o que quer”. Diogo, por seu lado, é eclético, gravou com o rapper carioca Marcelo D2 e a roqueira baiana Pitty. Fisicamente, Diogo lembra bastante o pai, mas a voz é um espanto de parecida, tem o mesmo timbre. No palco, parece uma reencarnação modernizada. Mas se alguns filhos de figurões da música ficam constrangidos quando comparados aos pais famosos, Diogo parece não ter o menor problema em cantar parecido com João Nogueira. O forte de João era a divisão e o vozeirão redondo. Era um cantor originalíssimo, além de bom compositor. Nesse quesito, Diogo ainda tem que gramar bastante. Mas se seu pai não era exatamente um galã, quando Diogo entra no palco é um frisson danado. A mulherada fica maluca com seu visual entre o sambista tradicional, o roqueiro e o surfista, com brincos, tatuagens e roupas descoladas. Essa imagem mais atual tem trazido para o samba um público que não tinha grande interesse pelo gênero. As semelhanças entre Diogo e o pai não se limitam à música. Diogo quase foi jogador profissional de futebol, mesmo sonho acalentado por seu pai, antes de se dedicar à música. Mas uma contusão tirou o jovem de campo e o Brasil ganhou um bom intérprete. Essa história remete à biografia do pai cantada nos versos do samba Espelho (parceria de João com Paulo Cesar Pinheiro, de 1977), no qual João cantou: “Um dia chutei mal e machuquei o dedo/ E sem ter mais o velho pra tirar o medo/ Foi mais uma vontade que ficou pra trás”. Diogo também perdeu o velho e machucou o dedo, herdando do pai o mesmo destino musical.

Ouça Espelho, com João no telão e Diogo no palco:


VEJA.COM 20/07/2010

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

JOÃO NOGUEIRA

Uma homenagem ao poeta da calçada





Por Julio Cesar Cardoso de Barros



João Batista Nogueira Júnior, o João Nogueira (12/11/1941-5/6/2000), cantor e compositor que se autodefinia como um sambista da calçada – como Noel Rosa - em contraponto aos sambistas do morro, morreu no dia 5 de junho de 2000, deixando uma legião de fãs de seu estilo muito pessoal de compor e cantar o samba e uma obra impecável. Talentoso e muito querido, ele emprestou seu nome a um centro cultural na sua cidade natal. No dia 8 de fevereiro de 2011, a prefeitura do Rio de Janeiro deu início às obras do espaço em sua homenagem, no local onde funciona a casa de espetáculos Imperator, um antigo cinema para 2 400 pessoas, que foi o maior da América Latina. No dia 12 de junho de 2012 a obra foi inaugurada com show para convidados e no dia 15 foi aberta ao público em geral. A prefeitura fez um investimento de 21 milhões de reais no prédio, que conta com salas de cinema, teatro, exposições, livraria e bistrô, além de um local exclusivo para guardar o acervo do artista. O prédio de três andares previa ainda um terraço verde de 1 200 metros quadrados com restaurante. O terreno, localizado no Méier - bairro onde João Nogueira nasceu, em 12 de novembro de 1941 - foi cedido pelo Estado em cerimônia da qual participaram o governador Sérgio Cabral, o prefeito Eduardo Paes, o cantor e compositor Diogo Nogueira, filho de João, e Ângela Maria Nogueira, sua viúva.


Filho de um advogado e violonista que tocava com a Velha Guarda do samba e com chorões de porte, João Nogueira começou a compor aos 15 anos, fazendo sambas para o bloco carnavalesco Labareda, do Méier, através do qual conheceu o músico Moacyr Silva, dirigente da gravadora Copacabana, que o ajudou a gravar o samba Espere, Ó Nega, em 1968. Mas ele apareceu na cena artística nacional quando no início dos anos 70 emplacou o sucesso Das 200 Pra Lá, samba que defendia a política de expansão de nossa fronteira marítima ao longo de 200 milhas da plataforma continental. O samba assumiu as primeiras posições das paradas na voz de Eliana Pittman e mereceu citação em reportagem da revista americana Time, pelo seu tom nacionalista afirmativo. Funcionário da Caixa Econômica, João se viu às voltas com certo patrulhamento, já que a bandeira das 200 milhas havia sido levantada pelo governo militar. "Pensaram que eu tinha virado Dom e Ravel", brincou ele mais tarde. Seu primeiro disco foi um compacto simples com Alô Madureira e Mulher Valente. Em 1969 Elizeth Cardoso gravou seu Corrente de Aço, no disco Falou e Disse.

João Canta Do Jeiro que o Rei Mandou:

Mas o primeiro álbum, que levou seu nome no título, só veio em 1972, pela Odeon, selo pelo qual lançaria seus primeiros seis LPs. No disco, um clássico: Beto Navalha, regravado com grande força por Martinho da Vila, em 1973, no LP Origens. Mas a largada para valer de João Nogueira na carreira se deu em 1974, com seu segundo LP, E Lá Vou Eu, disco que chamou a atenção da crítica e do mercado para uma novidade no reino do samba. A começar pelas parcerias com Paulo César Pinheiro (E Lá Vou Eu, Batendo a Porta, Eu Hein, Rosa (esta regravada por Elis Regina com grande sucesso em 1979), Partido Rico  e o lírico Braço de Boneca), Zé Catimba, o genial compositor da Imperatriz, aparece em Do Jeito Que o Rei Mandou, e a irmã Gisa Nogueira em Meu Canto Sem Paz e Eu Sei Portela. O disco resultou num show intimista em que o carioca se apresentou ao violão no Teatro 13 de Maio, em São Paulo, para uma platéia embevecida com a novidade.


João era diferente, não vinha do morro nem das escolas de samba, embora frequentasse a Portela desde criança, levado pelo pai, e não era o compositor de apartamento que fazia o ritmo popular, como Carlinhos Lyra, Tom Jobim e tantos outros. Se aproximava mais de Paulinho da Viola, com seu samba de varanda, som de subúrbios de casas avarandadas, de terreno antigo trilhado no choro e na seresta. Seu jeito de cantar era típico dos intérpretes do samba sincopado dos anos 40 e 50. Mas tinha personalidade. Como os velhos cantores, João brincava com a divisão, reinventando a síncopa. "É mais um João que veio diferente no cantar samba e fazer verso. É mais uma reza forte nas quebradas", disse dele o radialista e produtor Adelzon Alves, um grande impulsionador de seu início de carreira. Estava aberta a porteira pela qual João faria passar sua boiada. Em 1975, lançou Vem Quem Tem, novo grande disco, no qual se destacou a homenagem que fez a Natal, o todo poderoso dirigente da Portela e bicheiro de Madureira, a quem dedicou O Homem de Um Braço Só.


Se no LP de 1974 ele reservara uma faixa para Noel Rosa, de quem gravou Gago Apaixonado, neste ele gravaria Não Tem Tradução, reverenciando mais uma vez o poeta da Vila, um dos três esteios de sua inspiração, ao lado de Geraldo Pereira e Wilson Batista, dos quais recebeu as influências que explicavam seu estilo de compor e cantar o samba – e aos quais dedicaria um LP inteiro (Wilson, Geraldo e Noel, 1981, Polygram). O disco, contudo, seria lembrado por outros sucessos, como Nó na Madeira (parceria com Eugênio Monteiro) e Mineira, uma homenagem a Clara Nunes, parceria com P. C. Pinheiro, o marido da cantora. O disco trazia ainda três parcerias com um jovem violonista de muito talento, que se revelava ótimo compositor, Cláudio Jorge, com quem assinou três faixas do disco (Samba da Bandola, Chorando Pelos Dedos e Pra fugir Nunca Mais). Ivor Lancelotti, de quem João gravara o lindo samba-canção De Rosas e Coisas Amigas, no disco de 1974, reaparecia com Seu Caminho Se Abre. Em 1979 ele introduziria o parceiro no show João Nogueira Apresenta Ivor Lancelotti. Quando Diogo Nogueira, seu filho, canta Espelho, faixa título do disco que João lançou em 1977, os jovens que formam sua legião de fãs imaginam que ele está falando do pai, nos versos que dizem “Um dia chutei mal e machuquei o dedo/ E sem ter mais o velho pra espantar o medo/ Foi mais uma vontade que ficou pra trás”. Afinal, Diogo foi jogador profissional de futebol, esporte que abandonou depois de sofrer uma séria contusão. Na verdade a letra da música é auto-biográfica, sim, mas de João, o pai, referindo-se ao avô de Diogo. O flamenguista João Nogueira foi também um boleiro frustrado por uma contusão.


Nos quatro primeiros discos que João lançou estavam dadas as linhas mestras do que seria sua carreira. E está contido o melhor do compositor, que um dia entrou no Portelão cantando “Hoje eu estou cheio de alegria/ E sou até capaz de me embriagar/ Uns amigos bambas neste dia/ Me convidaram a participar/ De uma escola de samba que é todo meu dengo/ De um terreiro de bambas que é todo meu mal/ Vou me livrar da tristeza/ E sambar na beleza do seu Carnaval”, samba de apresentação à ala dos compositores da Águia de Osvaldo Cruz, que o convidará a se juntar a seus bambas, em 1972. O namoro duraria até meados dos anos 80, quando João abandonou a escola, descontente com os rumos que o presidente Carlinhos Maracanã lhe impôs, e juntou-se a outros sambistas, herdeiros do velho Natal, para fundar, em 1984, a Tradição, escola para a qual compôs em parceria com P. C. Pinheiro os cinco primeiros sambas-enredo, de 1985 a 1989. Diogo, seu filho, é a reconciliação com a Portela, onde foi por quatro vezes vencedor do samba-enredo.


João canta Espelho:

Em 1979, João fundou o Clube do Samba, com Alcione, Martinho da Vila e Beth Carvalho, entidade à qual dedicou o título de seu disco daquele ano, que trouxe novos sucessos, como Súplica e Canto do Trabalhador (com P. C. Pinheiro). O clube, que no início funcionava em sua casa e que mais tarde lançou um bloco carnavalesco para desfilar na Avenida Rio Branco arrastando foliões saudosos dos velhos carnavais, funcionou em vários endereços, inclusive na Barra da Tijuca. Pelo seu palco passaram os grandes nomes do samba e compositores das escolas cariocas. Era frequente a programação reunir numa mesma noite gente do naipe de Ivone Lara, João Nogueira e Roberto Ribeiro, que um ano depois de sua morte foi homenageado pelo bloco no Carnaval. O próprio João, morto no ano 2000, seria homenageado no Carnaval seguinte com o tema “Como Diria João”.


Uma das músicas mais cantadas de João, uma espécie de hino dos compositores, foi o sucesso do disco de 1980, Boca do Povo. Trata-se de Poder da Criação (“Ninguém faz samba só porque prefere/ Força nenhuma no mundo interfere/ Sobre o poder da criação”), novamente com P. C. Pinheiro, seu parceiro mais constante, com quem acabou por lançar o CD Parceria, em 1994, no qual comemoravam 22 anos de composições conjuntas e mais de 50 obras compostas. "A gente senta junto e, quando levanta, está saindo um samba. Até mesmo sem querer", diria João. Nas dezessete faixas do CD, há uma homenagem a Clara Nunes, morta em 1983, nas faixas Um Ser de Luz e As Forças da Natureza, de versos emocionados como As pragas e as ervas daninhas/ As armas e os homens do mal/ Vão desaparecer/ Nas cinzas de um Carnaval. João lançaria outros grandes discos, como o já citado em homenagem aos três grandes do samba, Wilson, Geraldo, Noel, seu nono álbum (1981), só com músicas dos três autores, dando descanso à parceria com P. C. Pinheiro.


João canta Nó na Madeira:

Ele seguiria lançando discos de qualidade (18 álbuns-solo no total) e participaria de discos coletivos, como Clara Nunes – Com Vida (1995), no qual dividiu as faixas com gente como Martinho da Vila, Roberto Ribeiro e Nana Caymmi. E Chico Buarque da Mangueira (1998), disco em homenagem ao compositor, que era enredo da escola naquele ano. Em 1995, com o maestro e pianista Marinho Boffa, João gravaria um CD só com músicas desse mesmo Chico Buarque de Hollanda, num trabalho de Almir Chediak com catorze canções, dentro da segunda edição do projeto Letra e Música. O disco foi lançado com um show no programa Seis e Meia do Teatro João Caetano. Ele participou também do disco Esquina do Samba, gravado ao vivo em 2000 no botequim Pirajá, em São Paulo, com Ivone Lara, Walter Alfaiate, Beth Carvalho, Moacyr Luz, Luiz Carlos da Vila e outros. No mesmo ano participou de um disco da Velha Guarda da Portela. Em 2009 foi çançado um DVD da participação de João Nogueira no programa Ensaio, da TV Cultura de São Paulo.

João Nogueira morreu na madrugada do dia 5 de junho de 2000, aos 58 anos, vítima de um infarto fulminante, em sua casa no Recreio dos Bandeirantes. João vinha sofrendo de problemas circulatórios que lhe haviam causado uma isquemia cerebral dois anos antes. Esteve internado em estado grave por um bom tempo, mas conseguiu se recuperar. Sofreu nova isquemia de menor impacto no início de 2000 e outra dois meses depois. Mas, sob observação médica, estava confiante, levava uma vida mais regrada, e ensaiava para shows que faria por aqueles dias, nos quais planejava apresentar trabalhos inéditos, além de sucessos de seu último álbum, João de Todos os Sambas, lançado em 1998 na quadra da Escola de Samba Acadêmicos da Rocinha, na favela que era homenageada no disco: "Junto ao mar/ Num morro que era ainda despovoado/ E dividia a Gávea e São Conrado/ Nasceu uma favela", dizia na faixa Rocinha. Foi uma perda grande para a cena musical brasileira. "Ele tinha uma forma de frasear muito própria. Não vejo seguidores dele. Creio que essa escola, cuja origem talvez tenha sido Ciro Monteiro, se acaba com a morte de João", lamentou Hermínio Bello de Carvalho. Todos sabiam de suas qualidades especiais de intérprete, mas João valorizava mesmo as composições. Só em 1999, quando recebeu o Troféu Eletrobras de MPB é que reconheceu seu canto. "Hoje estou adorando cantar. Antes, gostava que me vissem mais como compositor", disse. João deixou três filhos, entre eles Diogo, que pegou o bastão, não deixou a peteca cair e nos faz matar as saudades do pai, dada a semelhança física, vocal e a simpatia com que representa o melhor samba carioca.

VEJA.COM 19/02/2011

JOÃO NOGUEIRA E PAULO CESAR PINHEIRO

Em extinção

Uma espécie rara de samba

Parceria: amor ao Rio

Por Julio Cesar Cardoso de Barros

O letrista Paulo César Pinheiro e o sambista João Nogueira formam uma das mais proveitosas parcerias da MPB. São 22 anos e mais de cinquenta sambas que dão à dupla uma consistência rara. Para comemorar essa associação, eles se juntaram num show, que inspirou o CD Parceria. O disco traz músicas como O Poder da Criação, que exaltam a lira dos compositores, mostrando que há uma força transcendental que os faz derramar sobre o papel e as cordas do violão as letras e os acordes de novos sambas. A essa força se deve creditar cada uma das dezessete faixas do CD, que homenageia Clara Nunes, ex-mulher de Pinheiro, morta em 1983, nas faixasUm Ser de Luz e As Forças da Natureza, de versos emocionados como As pragas e as ervas daninhas/ As armas e os homens do mal/ Vão desaparecer/ Nas cinzas de um Carnaval. O amor ao Rio transparece nos sambas Rio, Samba, Amor e TradiçãoPrimeira Mão, Bares da Cidade eChico Preto, uma crônica da cidade adorada, mas violenta, preconceituosa e injusta.
A produção é de Eduardo Gudin, que recriou em estúdio o ambiente de show ao vivo. Os arranjos precisos, mas econômicos, perdem em relação às gravações originais. Em determinados momentos, a solenidade e o clima épico chegam a incomodar. A voz de João Nogueira se torna uma moldura grandiloquente para destacar as letras do parceiro. Pinheiro arrisca cantar. E o faz de maneira bastante razoável para quem tem uma palha de aço na garganta. O resultado é um bom apanhado do trabalho da dupla.
Pinheiro, o poeta, coleciona parceiros como Tom Jobim, Baden Powell e Dorival Caymmi. Nogueira é ovelha desgarrada do samba carioca, que não subiu o morro, mas espalhou-se pelas calçadas de Vila Isabel, Estácio, Cidade Nova e subúrbios do Rio. Seu canto brilha no ritmo sincopado de Eu, Hein Rosa!, um tipo de samba de sabor urbano que se perdeu nas esquinas de um Rio deteriorado. Espécie morta por uma bala perdida do fuzil AR-15 da indústria fonográfica. Nos descaminhos atuais do gênero, pode-se dizer que João Nogueira e Paulo César Pinheiro  são, mais do que compositores, preservacionistas.

VEJA/9/11/1994.

JORGE ARAGÃO

O clássico da avenida

Aragão: estilo reafirmado

Por Julio Cesar Cardoso de Barros

Nem só de samba-enredo vive o Carnaval carioca. Quando o Bloco do Pagodão pisar op asfalto da Marquês de Sapucaí, aquecendo as arquibancadas para o desfile das escolas de samba, o povo cantará uma seleção de sambas de terreiro de seus melhores compositores. Entre eles, uma presença obrigatória é Jorge Aragão, que acaba de lançar Acena, seu sétimo álbum.


Acena: sétimo álbum de Jorge Aragão

Responsável por sucessos como Coisinha do Pai e Vou Festejar, que embalaram desfiles do Cacique de Ramos e explodiram na voz de Beth Carvalho nos carnavais do final dos anos 70, Aragão é um dos fundadores do grupo fundo de Quintal. Apesar do sucesso com o ritmo de rua, seu forte são os sambas que falam das coisas do coração, como Malandro, sucesso na voz de Alcione, Papel de Pão (1990), Alvará (1992) e Marcas no Leito, com o parceiro Sombrinha. No CDAcena o compositor reafirma seu estilo personalíssimo. Como um Rei é um samba forte de letra despretensiosa. Falsas Razões tem o traço marcante de seus versos amorosos.
Embora suas músicas sejam o maior libelo em favor do samba, Aragão ainda quer dar toque nas consciências. É o que ocorre na nacionalista Casa Colonial (É geral/ A impressão de desolação/ Dessa casa colonial/ A lixeira cultural/ Filial do Tio Sam). Se em Coisa de Pele (1986) cantava eufórico “Sabemos agora/ Nem tudo que é bom vem de fora”, hoje ele se mostra preocupado com o jabaculê. “O samba/ Que era só de gente bamba/ Agora/ É dólar dentro da caçamba”, denuncia em Brava Gente Bamba. Sem jabá nem divulgação, o bom samba de Jorge Aragão sucumbe sob a avalanche do pagode de laboratório e as infinitas variações descartáveis de dance music. Reverenciado pela nova geração de sambistas, ele toca nos guetos do samba e vende num nicho muito específico do mercado. É por essas e outras que na faixa O Brasil Precisa Balançar, um samba delicioso de Roberto Menescau e Paulo César Pinheiro, os autores perguntam, entre perplexos e irônicos: “Se  o samba é bom/Por que é que ninguém quer sambar?”.

VEJA/8/2/1995.