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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

CLARA NUNES

A mineira guerreira


Por Julio Cesar Cardoso de Barros

No dia 5 de fevereiro de 2011, a Portela inaugurou o busto de Clara Nunes, na quadra da escola, localizada na Rua Clara Nunes, 81, em Madureira. Uma merecida homenagem àquela que foi uma das maiores cantoras que este país conheceu, e uma portelense de primeira linha. A voz doce e afinadíssima de Clara Nunes já seria o suficiente para colocá-la no hall da fama dos artistas que mais contribuíram para o engrandecimento da música popular brasileira. Mas ela ganha importância num outro campo. Ao lado de BethCarvalho, ela foi de grande importância no resgate de velhos compositores esquecidos, no incentivo aos jovens autores que iam surgindo e na valorização dos poetas das escolas de samba, da velha e da jovem guarda dos terreiros cariocas. Fez-se apresentar acompanhada de músicos vindos daquele ambiente, como Darcy da Mangueira, compositor e violonista, do conjunto Nosso Samba, formado por sambistas verdadeiros e de muitos outros músicos anônimos, os quais colocou lado a lado com artistas já consagrados. Conheça um pouco mais dessa figura tão importante na história da MPB e da escola de Madureira e Osvaldo Cruz.


Clara canta Portela na Avenida, de Mauro Duarte e P. C. Pinheiro):

A mineira Clara Francisca Gonçalves nasceu no antigo distrito de Cedro – hoje município de Caetanópolis - em Paraopeba, Minas Gerais, no dia 12 de agosto de 1942. E morreu no Rio, no dia 2 de abril de 1983, vítima de complicações durante uma cirurgia. Filha de um violeiro de Folia de Reis, ela ficou órfã muito pequena. Aos dez anos, o DNA musical se manifestou e ela ganhou um concurso de canto de sua cidadezinha, com a guarânia Recuerdos de Ypacaraí, um grande sucesso do rádio. Foi operária tecelã em sua terra natal e aos 16 anos mudou-se para Belo Horizonte, onde cursou o Normal e participou do coral a igreja de seu bairro. O rádio por essa época tocava Ângela Maria, Elizeth Cardoso, Carmem Costa, Dalva de Oliveira e outras grandes intérpretes dos anos dourados. Na capital mineira, participou de programas de calouros, sob o nome de Clara Francisca. Nos anos 60, namorando um irmão do roqueiro brazuca Eduardo Araújo, trocou o nome para Clara Nunes e foi apresentada ao meio artístico. Depois de participar do concurso A Voz de Ouro ABC, classificando-se na fase mineira e pegando um terceiro lugar na final, em São Paulo, foi contratada pela Rádio Inconfidência de Belo Horizonte e dedicou-se paralelamente à noite de BH, cantando em night clubs locais. A fama que foi adquirindo lhe valeu em 1963 a conquista de um espaço nobre na TV local, onde passou a comandar o programa Clara Nunes Apresenta, por onde passaram grandes nomes da MPB. Gravou pela primeira vez num pau-de-sebo, LP com vários cantores, gravado em Minas pela Rádio Inconfidência, em 1965.

Clara canta, de Candeia, O Mar Serenou:

No mesmo ano mudou-se para o Rio, onde se apresentou em programas de música ao vivo na TV e participou dos filmes Na Onda do Iê-Iê-Iê (1966), Carnaval Barra Limpa (1967) e Jovens Pra Frente (1968), apresentando números musicais que iam de marchinhas carnavalescas a baladinhas românticas típicas do movimento jovem, ao lado de nomes como Ed Lincoln, Wanderley Cardoso, Emilinha Borba, Ângela Maria, Altemar Dutra, Marlene, Rosemary, Jair Rodrigues e Dircinha Batista. Era a fina flor dos nossos melhores intérpretes, do romântico à Jovem Guarda. Contratada pela Odeon, sua gravadora para a vida toda, lançou o primeiro álbum em 1966, A Voz Adorável de Clara Nunes, no qual predominavam as canções românticas, boleros e sambas-canção. Seu namoro com esses gêneros durou pouco. Logo ela entrava naquele que seria o rumo definitivo de sua carreira. Sob influência de Adelzon Alves, um excelente produtor de discos e apresentador de programas de samba, Clara se interessou cada vez mais pelo ritmo. Seu segundo disco, Você Passa e Eu Acho Graça, marca sua estréia vigorosa no terreiro do samba, com a música de Ataulfo Alves e Carlos Imperial que deu título ao álbum registrando o primeiro sucesso de sua carreira. Nas duas dezenas de discos que gravou a partir daí deu destaque a compositores ligados às escolas de samba, como Candeia, e a sambistas do asfalto, como João Nogueira e Eduardo Gudin, parceiros de seu futuro marido,Paulo Cesar Pinheiro. Participou dos grandes festivais de música popular, que dominaram a audiência das TVs na década, defendendo sambas de cobras como EltonMedeiros e iniciantes como Paulinho da Viola.

Clara Nunes canta Conto de Areia, de Romildo e Toninho Nascimento:

Clara se encantou com a música brasileira que foi conhecendo nos terreiros e quintais deste Brasil. Fez pesquisas em busca de conhecimento de nossas raízes musicais, viajou pelo país, foi à África e fez a cabeça no Candomblé. Os anos 70 vão encontrá-la totalmente entregue ao ritmo. Em 1972 fez grande sucesso com Ilu Ayê, um belo samba-enredo de Norival Reis que a Portela – escola à qual se entregaria de corpo e alma – levou para a passarela no Carnaval naquele ano. Mas outro samba do disco também assaltou as ondas do rádio: o embalado Ê Baiana (de Baianinho, da Em Cima da Hora). As escolas de samba estavam na moda e Clara navegou bem na maré. Da pequena escola de samba Tupi de Brás de Pina, ela gravou o samba-enredo Seca no Nordeste, apresentado no Carnaval de 1961, na Praça Onze. Além dos sambas de escola, gravou com enorme sucesso sambas de terreiro de Candeia, sambas de “calçada” de João Nogueira, canções de Caymmi, Caetano Veloso, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Wilson Moreira, Nei Lopes, Cartola e tantos outros grandes compositores. Tornou-se uma diva da MPB, fez turnês pelo país e pelo exterior. O auge de sua carreira talvez tenha começado com o lançamento do LP Alvorecer, em 1974, do qual se extraíram os sucessos estrondosos Contos de Areia, da dupla Romildo e Toninho Nascimento, e Menino Deus, de Mauro Duarte e P. C. Pinheiro. Nesse mesmo ano, participou do espetáculo Brasileiro Profissão Esperança, de Paulo Pontes, ao lado de Paulo Gracindo, resultando daí um disco fantástico.

Disco fantástico: parceria com Paulo Gracindo


Clara era um sucesso fonográfico, destruindo um mito de que no Brasil mulher não vendia discos. Ainda mais cantando samba. Pois Clara se tornou a maior vendedora de discos da EMI-Odeon. Clara Nunes na EMI e Beth Carvalho na RCA desmentiam os marqueteiros das gravadoras, as duas trafegando na mesma faixa de mercado numa rivalidade saudável, em que a voz rouca e aconchegante de Beth Carvalho contrastava com a exuberância de Clara, mostrando que não há empecilho vocal para as boas intérpretes do samba. Logo as gravadoras esqueceram da falsa verdade e tentaram sem muito sucesso lançar novas Claras no mercado. Mas Clara era única. Em 1976 ela gravou o disco Canto das Três Raças, que daria nome ao show que inaugurou seu Teatro Clara Nunes, no Rio, projeto em parceria com Paulo Cesar Pinheiro. Seus shows eram sempre um sucesso de fechar o comércio. Em 1977, Clara vendeu 800 000 cópias do LP Forças da Natureza. Um recorde nacional. Por essa época, ela, Beth Carvalho e Alcione eram absolutas em termos de venda. Garantia de lucro para suas gravadoras. E faziam shows sem parar, numa agenda alucinante, que ia dos grandes teatros às quadras de escolas de samba de São Paulo e Rio de Janeiro. Sempre com casa cheia. Eram as três damas do samba, como Martinho da Vila, João Nogueira e Roberto Ribeiro dominavam do lado masculino. Em 1981, Bibi Ferreira foi chamada a dirigir Clara Mestiça, uma mostra da importância que ela havia adquirido no showbiz nacional. Muito profissional e perfeccionista, Clara Nunes fez discos impecáveis, tendo sido 16 de seus álbuns relançados em CD, em 1996, depois de remasterizados nos estúdios de Abbey Road.


No Japão, Canto das Três Raças, de Mauro Duarte e P. C. Pinheiro):

1975: o casamento com P. C. Pinheiro

Seu último trabalho fonográfico foi o LP Nação, de 1982, no qual se destacou o samba exatação Serrinha, homenagem aos velhos compositores da escola Prazeres da Serrinha, de Madureira, de onde saíram os sambistas que fundaram a Império Serrano. Carnavalesca amada pelos sambistas, ela não viu o Carnaval seguinte. Esteve em coma por 28 dias, até a quarta-feira de cinzas de 1983, vítima de um choque anafilático, uma rara reação alérgica à anestesia, ocorrência que pode se dar uma vez em 20 000 operações. Com o fim do Carnaval daquele ano, morria Clara Guerreira. A Portela, que agora inaugura um monumento em sua homenagem, não cansa de relembrá-la. Deu seu nome à rua onde está instalado o Portelão, a quadra de sua escola em Madureira. E em 1984, inaugurou o Sambódromo com o enredo Contos de Areia, uma homenagem a Paulo da Portela, o fundador, a Natal, o legendário presidente de um braço só, e a Clara Nunes, a Guerreira. Um nome a ser lembrado com carinho, como faz agora sua Portela querida, inaugurando-lhe um monumento que a imortaliza no terreiro do samba.


Nação: último disco

VEJA.COM 13/02/2011

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

BETH CARVALHO

Adeus, madrinha!



Por Julio Cesar Cardoso de Barros

Morreu no Rio de Janeiro nesta terça-feira, 30 de abril de 2019, a cantora Beth Carvalho, a madrinha do pagode, aos 72 anos. Ela estava internada no Hospital Pró-Cardíaco, no Botafogo, Zona Sul da cidade, desde 8 de janeiro.

Depois de um afastamento causado por uma fissura na região sacra, que a levou à cadeira de rodas sujeita a repouso absoluto, Beth Carvalho, uma das maiores cantoras brasileiras, retomou oficialmente a carreira em fevereiro de 2013, com shows no SESC, no Rio, e no HSBC Brasil, em São Paulo, em apresentações únicas. "Estou muito feliz e emocionada por reencontrar meus músicos e por apresentar agora esse show ao público paulista. Nesse período em que fiquei afastada, recebi muito carinho dos meus fãs, parentes, amigos e compositores. Essa força é que me leva de volta ao palco. O samba cura", declarou na ocasião. Nascida no dia 5 de maio de 1946 no bairro da Gamboa, na região portuária do Rio, um dos berços do samba carioca, Elizabeth Santos Leal de Carvalho foi criada na Zona Sul, do Catete a Botafogo, bairro cujo time de futebol tornou-se uma de suas grandes paixões. Neta de uma violonista e bandolinista, irmã da cantora Vânia Carvalho, ela começou a cantar muito cedo e ainda menina participou de programas de rádio, inspirada no ambiente musical em que vivia, com sua casa frequentada por Elizete Cardoso, Silvio Caldas e outros artistas, amigos de seu pai, o advogado Francisco Leal de Carvalho. Estudou na Escola Nacional de Música, fez balé clássico e se encantou com o movimento da bossa nova, liderado por João Gilberto no final dos anos 50, início dos 60. Por essa época, cantou em festivais universitários e participou de shows de bossa. Foi nesse clima que deu início à sua carreira fonográfica, em 1965, com um compacto simples pela RCA Victor, que trazia a música Por Que Morrer de Amor?, dos bosseiros Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli. Em 1967, como cantora do conjunto 3D, gravou o LP, Muito na Onda, com Antônio Adolfo ao piano e Hélio Delmiro na guitarra. O repertório trazia hits internacionais do momento, como Winchester Cathedral (G. Stephens), clássicos da canção Americana, como I've Got You Under My Skin e Night And Day, de Cole Porter, além de Chico Buarque, Gilberto Gil, Menescal e Bôscoli, Marcos e Paulo Sérgio Vale e Antonio Adolfo. No mesmo ano fez parte do elenco do espetáculo Música Nossa, com Egberto Gismonti e Tibério Gaspar.

Grupo 3D: bossa e Cole Porter

 Conheceu, então aquele que seria um de seus compositores preferidos, cuja influência a levou a trocar a bossa pelo samba: Nelson Cavaquinho, com quem participou do show A Hora e a Vez do Samba, que contava ainda com Zé Kéti e o grupo Os Cinco Crioulos. Sua boa voz levemente rouca, aveludada e superafinada atraiu a atenção dos autores e músicos com quem trabalhou. Foi assim que defendeu Caminhada, de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar no Festival Internacional da Canção, em 1967. A partir daí foi figurinha carimbada nos festivais, tendo seu ápice em 1969, quando defendeu o que seria um de seus sucessos eternos, Andança, de Paulinho Tapajós, Edmundo Souto e Danilo Caymmi, que ficou no terceiro lugar no III Festival Internacional da Canção. A música deu título ao seu primeiro LP, pela Odeon. Em 1969, foi à Grécia, defender Rumo Sul,  uma música de Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, na Olimpíada da Canção Mundial, classificando-se em sexto lugar. Passada a fase da bossa nova e dos festivais, Beth se entregou de corpo e alma ao samba, gênero pelo qual se apaixonou e que coube direitinho em sua boa voz e na sua interpretação sóbria. Ao longo da década de 70 lançou grandes discos com o melhor do samba: Beth Carvalho Especial (1971), Canto Por Um Novo Dia (1973), Pra seu Governo (1974), Pandeiro e Viola (1975), Mundo Melhor (1976), Nos Botequins da Vida (1977), De Pé no Chão (1978) e No Pagode (1979).

Beth canta Andança:

Beth Carvalho é o tipo da cantora que não quer parceria dos compositores que grava. Ela procura ser o mais fiel possível à composição original, o que faz a alegria de seus autores. A sobriedade da interpretação desnuda uma voz de características únicas no universo da música popular brasileira. Homogênea nos graves e nos agudos, suave, mas densa. Sem grandes apelos dramáticos, os sambas-canção que grava não têm aquele romantismo derramado tão do agrado das massas consumidoras de música no Brasil, mas exibem o lirismo sóbrio que caracteriza autores como Cartola, Mauro Duarte e Délcio Carvalho. Com tais características seria de estranhar que ela pudesse gravar sambas mais rasgados, mas foi exatamente o que ela fez com grande sucesso. A partir de 1971, quando na verdade tem início para valer sua carreira de sambista, com a gravação em compacto do samba-enredo da Unidos de São Carlos Rio Grande do Sul na Festa do Preto Forro, e do samba de embalo Amor, Amor, do Bloco Carnavalesco Bafo da Onça, ela enveredou por todos os subgêneros do samba de escola, de morro e suburbano, gravando velhos autores esquecidos, valorizando os bons compositores que já tinham alguma visibilidade e, sobretudo, descobrindo jovens inspirados das quebradas mais distantes. No LP Canto Por Um Novo Dia, cujo título é um samba de Garoto da Portela, gravou o clássico Folhas Secas, um dos muitos sambas imortais de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito. Sobre esse disco, José Ramos Tinhorão, o crítico de opinião de pedra, escreveu: "Um dos melhores discos de música popular brasileira dos últimos tempos foi lançado pela Tapecar praticamente em cima do carnaval passado, acrescentando a essa importunidade um tal descaso pela sua divulgação, que transformou o disco numa obra quase clandestina. No entanto, esse LP intitulado Beth Carvalho - Canto por um Novo Dia (Tapecar X-19) possui tais qualidades, e oferece tantas sugestões, que seria uma omissão imperdoável deixá-lo passar sem um comentário, apesar do atraso". Sua preocupação com a qualidade a levou a reunir em torno de si um time de músicos que emolduraram com belos arranjos e harmonias sambas às vezes rústicos, porém inspirados, que foi buscar nos terreiros das escolas e nas rodas dos subúrbios da cidade. Com esse propósito, entraram em estúdio gênios do naipe de Dino 7 Cordas, Geraldo Vespar, Nelson Cavaquinho (violão), Luizão (baixo), o pianista e arranjador Cesar Camargo Mariano, o ritmista Marçal, o Conjunto Nosso Samba, Chico Batera, Martinho da Vila e muitos outros. Era o samba recebendo tratamento de primeira.

Canto Por Um Novo Dia

Em 1974, no álbum Pra Seu Governo, um samba de Gracia do Salgueiro estourou nas rádios: 1800 Colinas. O sucesso a catapultou para o primeiro time da música e a levou novamente à Europa. A esse disco seguiram-se quatro dezenas de álbuns, sempre com a marca da qualidade da intérprete, dos arranjos refinados e das composições selecionadas, dando ao samba um status que havia tempos ele perdera. Os holofotes estavam sobre ela e a Globo incluiu sua gravação de As Rosas não Falam, de Cartola, na trilha da novela Duas Vidas (1975). Quando isso acontece, o sucesso se amplifica entre as diversas camadas da população – e Beth tornou-se unanimidade. Ao lado de Clara Nunes, que também era um sucesso fonográfico de monta por essas alturas, Beth ajudava a destruir o mito de que no Brasil mulher não vendia discos. Ainda mais cantando samba. Clara Nunes na EMI e Beth Carvalho na RCA desmentiam os marqueteiros das gravadoras, as duas trafegando na mesma faixa de mercado numa rivalidade saudável em que a voz rouca e aconchegante de Beth Carvalho contrastava com a exuberância de Clara, mostrando que não há empecilho vocal para as boas intérpretes do samba. Os anos 70 foram dominados por grandes intérpretes do gênero, como Beth, Clara, Alcione, Roberto Ribeiro, João Nogueira e Martinho da Vila.

Beth canta 1800 Colinas:

O samba estava no auge. Nelson Cavaquinho lançara seus primeiros LPs, o mesmo acontecendo com Cartola, corrigindo injustiças históricas e perpetuando a voz desses dois grandes autores na interpretação de suas canções. Em 1977, Beth gravou com estrondoso sucesso O Mundo É Um Moinho, de Cartola, regravado inúmeras vezes pelos mais diferentes artistas. Pouco depois, ela estouraria com os sucessos Vou Festejar (Neoci, Dida e Jorge Aragão, 1978) e Coisinha do Pai (Jorge Aragão, Almir Guineto e Luiz Carlos da Vila, 1979), que embalaram desfiles do Cacique de Ramos e explodiram na sua voz nos carnavais do final dos anos 70. Por esta época, depois de gravar várias composições de autores das escolas de samba, dos morro e subúrbios da cidade, Beth incursionou pela Paulicéia, onde mantinha uma platéia fiel, que lotava ginásios e quadras de escolas de samba para ouvi-la. Teve contato com os compositores da terra e não perdeu tempo. Abriu nova frente de trabalho: a divulgação de bons compositores paulistanos ou em atividade na cidade. Em 1979, o compositor Talismã, da Escola de Samba Camisa Verde e Branco, teve seu samba Meu Sexto Sentido (parceria com Raymundo Prates) gravado no LP No Pagode. Mais tarde, ela gravaria Geraldo Filme, Osvaldinho da Cuíca, Adoniram Barbosa, Paulo Vanzolini, Eduardo Gudin entre outros, chegando a lançar um disco duplo exclusivamente com sambas paulistas, produzido em 1994 por Eduardo Gudin: Beth Carvalho Canta o Samba de São Paulo, que lhe valeu um Prêmio Sharp. No início dos anos 80, marcando sua vocação de madrinha, chegou a batizar a Rua do Samba, que a escola Camisa Verde e Branco promovia diante do salão São Paulo Chic, na Rua Brigadeiro Galvão, na Barra Funda, reunindo uma média de 5 000 pessoas aos domingos.

Beth canta Vou Festejar com a bateria Surdo Um da Mangueira:

 Os anos 80 viram nascer o chamado pagode, no embalo das rodas de samba do Cacique de Ramos, de onde saiu o grupo Fundo de Quintal, revelando talentos como Neoci, Almir Guineto, Jorge Aragão, Sereno, Sombrinha, e depois Arlindo Cruz, Cléber Augusto e outros. Se antes pagode queria dizer reunião de sambistas ou a forma como o sambista se referia à sua mais recente composição, agora ele assumia características de subgênero, trazendo como inovação o repique de mão, o tantam no lugar do surdo e o banjo de braço curto, introduzido por Almir Guineto. Beth foi madrinha desse povo, gravando suas músicas e divulgando seus autores. Levou prestígio ao samba do terreiro do Cacique. Em entrevistas, exaltava suas qualidades de reduto do melhor samba. Foi por Beth que muitos jornalistas ouviram falar, na primeira metade dos anos 80, de um jovem talento que despontava: "Olha, só! Guarda esse nome: Zeca Pagodinho. Esse menino é muito bom". Luiz Carlos da Vila, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal são todos afilhados de Beth, embora muita gente faça piada com essa exuberância de amadrinhamento.

Beth canta Folhas Secas:

Beth levou os sambas do Cacique aos primeiros lugares em execução nas rádios. Tornou-se a protetora desses sambistas e assumiu o primeiro lugar entre os artistas nacionais. Em 1984, o samba de embalo Firme e Forte (Efson e Nei Lopes) estourou de norte a sul. Beth não teve sossego. Entre shows abundantes e participação nas rodas de samba de fundo de quintal em Ramos e outros terreiros, ela encontrou ânimo para desfilar no Bloco do Clube do Samba (que ajudara a fundar em 1979) no Cacique, na Portela, na sua Mangueira e na Unidos do Cabuçu, escola da qual foi o enredo naquele ano. Sua autenticidade na dedicação ao samba cobrou-lhe um preço mais tarde, quando o excesso de participação em mesas e rodas de samba, além dos múltiplos shows, a forçaram a fazer uma cirurgia para retirar calos nas cordas vocais. Mas nos anos 80 nada conseguiu barrá-la. Foram anos de fartura de lançamentos. Em 1980, saiu Sentimento Brasileiro que abria com A Chuva Cai, de Argemiro e Casquinha, autores da Velha Guarda da Portela, à qual sempre prestigiou, com fez com os mangueirenses Cartola, Nelson Cavaquinho e Nelson Sargento. Seguiram-se Na Fonte (1981), Traço de União (1982), Suor no Rosto (1983), Coração Feliz (1984), Das Bênçãos que Virão Com os Novos Amanhãs (1985), Beth (1986), Ao Vivo em Montreux (1987), Toque de Malícia e Alma do Brasil (1988) e Saudades da Guanabara (1989), cujo samba título é um clássico de Moacyr Luz, Paulo César Pinheiro e Aldir Blanc. Foi uma década de muito sucesso, mas de um trabalho intenso.

O samba paulista em 2 volumes

 Mas quem disse que a sambista descansou? Na poeira do terreiro carioca o pagode se expandiu e encontrou em São Paulo sua versão mais romântica e mais melosa. Surgiram dezenas de grupos gravando, fazendo shows e vendendo como nunca se viu. Fortunas foram amealhadas do dia para a noite e os reis do mercado da década anterior se viram diante de uma concorrência brava. Foi um período de dificuldades para todos os artistas ligados ao samba tradicional, muitos deles cedendo à tentação do sucesso fácil e aderindo ao sambanejo, ao samba lacrimoso, ao pagode meloso. Essa avalanche entrou pelos anos 90 com força, restringindo um pouco o espaço dos sambistas tradicionais. Mas Beth Carvalho não cedeu à pressão do mercado. Continuou fazendo um trabalho bem cuidado, com repertório selecionado entre o que de melhor se produzia, regravando autores clássicos e descobrindo novos.

Beth canta As Rosas Não Falam:

Em 1991 reuniu um lote de afilhados para a gravação do disco Beth Carvalho ao Vivo no Olímpia, no qual revisitou velhos sucessos compartilhados com Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Fundo de Quintal entre tantos. No ano seguinte, lançou pela Som Livre o CD Pérolas, comemorando os 25 anos de carreira. Nele, reuniu seus grandes autores, de Nelson Cavaquinho a Ismael Silva e Pixinguinha, passando por Chico Buarque e Adoniran Barbosa. Um clássico, no qual deixava patente que não tinha compromisso com modismos. Em 1994 lançou o já citado Beth Carvalho canta o samba de São Paulo, pelo selo Velas, onde canta os já referidos Geraldo Filme, Talismã, Adoniran, Paulo Vanzolini e Eduardo Gudin. Em 1996, Beth Carvalho, que havia dois anos não gravava, reuniu sambas de primeira num CD belíssimo em que o tom romântico predominava. A seleção minuciosa dessa caçadora de talentos revelou em Brasileira da Gema achados como Se Você Soubesse, do desconhecido Fernando de Lima, e Desilusão de Amor, de Sombra e Paulo Cesar Pinheiro. No clássico Sempre Mangueira, do venerado Nelson Cavaquinho, Beth declarou sua paixão pela verde e rosa. Um grande disco que se soma à dezena que lançou naquela década e que incluiu ainda Intérprete (1991), Pérolas (1992), Beth Carvalho e Nelson Cavaquinho (lançado em 1993 no Japão), Pérolas do Pagode (1998) e Pagode de Mesa (1999) e outros lançamentos e discos variados com seleção de antigas gravações. Os anos 2000 não ficaram sem novidades da cantora, que lançou trabalhos inéditos, coleções e discos gravados ao vivo, como Beth Carvalho: A Madrinha do Samba ao Vivo Convida (2004).

Homenagem ao samba baiano

Beth jamais abandonou o aconchego do samba levado nas rodas de amigos, onde só quem é bamba dá o recado e onde não vale o cartel do sucesso comercial. Fiel a esse samba mais autêntico, ele gravou em 2000 o CD Pagode de Mesa ao Vivo, que rendeu um volume 2, e discos originais como Nome Sagrado, em que canta canções de Nelson Cavaquinho (2001), homenagem que ela repetiu em relação a Cartola, num disco de 2003. Lançou ainda Beth Carvalho e Amigos (2005), compartilhou Cidade do Samba (2007) com Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Nelson Sargento e vários outros, e lançou Primeiras Andanças, uma coletânea com cinco CDs reunindo suas primeiras gravações. Em 2006 ela foi a Salvador, onde gravou ao vivo o CD Beth Carvalho canta o Samba da Bahia, disco lançado no ano seguinte no Canecão, no Rio, onde gravou o DVD com 30 músicas de compositores como Riachão, Dorival Caymmy, Caetano Veloso, Ederaldo Gentil, Batatinha e muitos outros, e contou com a participação de convidados que foram de Ivete Sangalo e Damiela Mercury a Gilberto Gil, Caetano e Maria Bethânea.

Beth canta com Ivete Sangalo Batucada Brasileira:

Beth continuou em sua peregrinação pelas quebradas mais obscuras onde seu faro de caça talentos descobria samba bom. E foi batizando novos valores aqui e ali, cumprindo sua vocação e sina de madrinha. A febre do pagode meloso, que prosseguira pelos anos 90 a fora,  Beth ignorou solenemente, mantendo-se na trilha do samba de raiz, mas buscando a renovação dentro do gênero, com respeito às suas características. Foi assim que nos anos 2000 descobriu para o país o paulistano Quinteto em Branco e Preto, com jovens da Zona Sul de São Paulo que foram revelados no famoso Samba da Vela, frequentado pela cantora em suas incursões pela terra da garoa. Deu força aos garotos, chamando-os para acompanhá-la em seus shows e ainda participou de seu primeiro disco. Essa generosidade para com os jovens valores esteve presente também no show que realizou no final de 2005, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em comemoração aos 40 anos de carreira, quando chamou para os holofotes o cantor Diogo Nogueira, filho de seu amigo João, que lembrou o pai ao cantar seu sucesso O Poder da Criação. Foi praticamente o lançamento do ex-boleiro Diogo na carreira que consagrou o pai. A carreira profícua de Beth Carvalho não cabe num breve perfil na internet. É uma história de amor ao samba como não se vê por aí. Uma dedicação de toda uma vida adulta. Beth Carvalho é uma figura a merecer todas as homenagens de velhos e novos sambistas, pela dignidade que imprimiu à sua defesa intransigente do gênero. Neste Carnaval de 2011, ela recebeu o muito merecido Estandarte de Ouro, premiação do jornal O Globo aos melhores do Carnaval carioca, como Personalidade do Ano. É a artista de volta à ativa, recebida de braços abertos por todos os que vêem nela a grande incentivadora de velhos e novos valores, cujos sambas registra para a posteridade com uma competência rara. Seja bem-vinda, madrinha!

VEJA.COM 21/04/2011

BETE CARVALHO 2

Carioca da gema


Por Julio Cesar Cardoso de Barros

Os amantes do samba tiveram um ótimo ano em 1996, com vários lançamentos de qualidade. Beth Carvalho, que havia três anos não gravava, é o melhor exemplo dessa boa safra. Ela reuniu sambas de primeira num CD belíssimo em que o tom romântico predomina. A seleção minuciosa dessa caçadora de talentos revela achados como Se Você Soubesse, do desconhecido Fernando de Lima, e Desilusão de Amor, de Sombra e Paulo Cesar Pinheiro. No clássico Sempre Mangueira, do venerado Nelson Cavaquinho, Beth declara com paixão suas cores carnavalescas. Quem gosta de samba não precisa pensar duas vezes.

Veja/11/12/1996

LUIZ CARLOS DA VILA

Um compositor que honra a Vila Isabel



Raças Brasil: samba do bom

Por Julio Cesar Cardoso de Barros

Contrariando a tese de que o samba morreu, a gravadora Velas lança o CD Raças Brasil, de Luiz Carlos da Vila, prova irrefutável de que o gênero não só sobrevive como se renova na voz inspirada de um grande compositor. Da mesma geração e parceiro de nomes como Jorge Aragão, Arlindo Cruz e Sombrinha, Luiz Carlos da Vila é daqueles autores que conquistaram a admiração dos bons intérpretes. Aos 46 anos, já teve várias músicas gravadas por Simone, Martinho da Vila, Grupo Fundo de Quintal, João Nogueira e Beth Carvalho, que o lançou, em 1980, com O Sonho Não Acabou, uma homenagem ao portelense Candeia, regravada neste CD. “Foi a partir daí que eu explodi?”, diz Luiz Carlos, ironizando o pouco sucesso dos bons sambistas num mercado viciado.
Em Raças Brasil, o destaque inevitável é Além da Razão, parceria com Sombra e Sombrinha, que canta: Por te amar eu pintei/Um azul do céu se admirar/…De um vulgar fiz um rei/ E do nada um império pra te dar. A música foi gravada por Jorge Aragão, Beth Carvalho e pelo Grupo Fundo de Quintal. É na combinação de uma poesia singela sobre uma base melódica sofisticada que o autor firma seu estilo. Faz um samba à altura das tradicionais calçadas de Vila Isabel, sem envergonhar Noel Rosa. Sendo da Vila, não podia ficar de fora do samba da escola. A faixaKizomba prova sua competência nessa área à exaustão. Num terreiro onde os cobras do enredo sempre foram Martinho da Vila e Paulo Brazão, ele levou a escola Unidos de Vila Isabel ao título de 1988 nessa parceria com Jonas e Rodolfo. Raças Brasil é um disco de autor. Dificilmente fará sucesso. Para isso, Luiz Carlos teria de contar com as gordas verbas com as quais se patrocinam os pacotes promocionais que alimentam as emissoras de rádio. Enquanto isso não acontece, ele tem de contar apenas com seu talento. Na caminhada dura do samba, resta ao compositor o consolo de ter pisado o asfalto do reconhecimento, enquanto legiões de talentos anônimos se perderam na poeira da estrada.

VEJA/15/11/1995.