A mineira guerreira
Por Julio Cesar Cardoso de Barros
No dia 5 de fevereiro de 2011, a Portela inaugurou o busto de
Clara Nunes, na quadra da escola, localizada na Rua Clara Nunes, 81, em Madureira. Uma merecida homenagem àquela que foi uma das maiores cantoras que
este país conheceu, e uma portelense de primeira linha. A voz doce e
afinadíssima de Clara Nunes já seria o suficiente para colocá-la no hall da
fama dos artistas que mais contribuíram para o engrandecimento da música
popular brasileira. Mas ela ganha importância num outro campo. Ao lado de BethCarvalho, ela foi de grande importância no resgate de velhos compositores
esquecidos, no incentivo aos jovens autores que iam surgindo e na valorização
dos poetas das escolas de samba, da velha e da jovem guarda dos terreiros cariocas.
Fez-se apresentar acompanhada de músicos vindos daquele ambiente, como Darcy da
Mangueira, compositor e violonista, do conjunto Nosso Samba, formado por
sambistas verdadeiros e de muitos outros músicos anônimos, os quais colocou
lado a lado com artistas já consagrados. Conheça um pouco mais dessa
figura tão importante na história da MPB e da escola de Madureira e Osvaldo
Cruz.
Clara canta Portela na Avenida, de Mauro Duarte e P. C. Pinheiro):
A mineira Clara Francisca Gonçalves nasceu no antigo distrito de Cedro –
hoje município de Caetanópolis - em Paraopeba, Minas Gerais, no dia 12 de
agosto de 1942. E morreu no Rio, no dia 2 de abril de 1983, vítima de
complicações durante uma cirurgia. Filha de um violeiro de Folia de Reis, ela
ficou órfã muito pequena. Aos dez anos, o DNA musical se manifestou e ela
ganhou um concurso de canto de sua cidadezinha, com a guarânia Recuerdos de
Ypacaraí, um grande sucesso do rádio. Foi operária tecelã em sua terra natal e
aos 16 anos mudou-se para Belo Horizonte, onde cursou o Normal e participou do
coral a igreja de seu bairro. O rádio por essa época tocava Ângela Maria,
Elizeth Cardoso, Carmem Costa, Dalva de Oliveira e outras grandes intérpretes
dos anos dourados. Na capital mineira, participou de programas de calouros, sob
o nome de Clara Francisca. Nos anos 60, namorando um irmão do roqueiro brazuca
Eduardo Araújo, trocou o nome para Clara Nunes e foi apresentada ao meio
artístico. Depois de participar do concurso A Voz de Ouro ABC,
classificando-se na fase mineira e pegando um terceiro lugar na final, em São
Paulo, foi contratada pela Rádio Inconfidência de Belo Horizonte e dedicou-se
paralelamente à noite de BH, cantando em night clubs locais. A fama que foi
adquirindo lhe valeu em 1963 a conquista de um espaço nobre na TV local, onde
passou a comandar o programa Clara Nunes Apresenta, por onde passaram
grandes nomes da MPB. Gravou pela primeira vez num pau-de-sebo, LP com vários
cantores, gravado em Minas pela Rádio Inconfidência, em 1965.
Clara canta, de Candeia, O Mar Serenou:
No mesmo ano mudou-se para o Rio, onde se apresentou em programas de música
ao vivo na TV e participou dos filmes Na Onda do Iê-Iê-Iê (1966), Carnaval
Barra Limpa (1967) e Jovens Pra Frente (1968), apresentando
números musicais que iam de marchinhas carnavalescas a baladinhas românticas
típicas do movimento jovem, ao lado de nomes como Ed Lincoln, Wanderley
Cardoso, Emilinha Borba, Ângela Maria, Altemar Dutra, Marlene, Rosemary, Jair
Rodrigues e Dircinha Batista. Era a fina flor dos nossos melhores intérpretes,
do romântico à Jovem Guarda. Contratada pela Odeon, sua gravadora para a vida
toda, lançou o primeiro álbum em 1966, A Voz Adorável de Clara Nunes,
no qual predominavam as canções românticas, boleros e sambas-canção. Seu namoro
com esses gêneros durou pouco. Logo ela entrava naquele que seria o rumo
definitivo de sua carreira. Sob influência de Adelzon Alves, um excelente
produtor de discos e apresentador de programas de samba, Clara se interessou
cada vez mais pelo ritmo. Seu segundo disco, Você Passa e Eu Acho Graça,
marca sua estréia vigorosa no terreiro do samba, com a música de Ataulfo Alves
e Carlos Imperial que deu título ao álbum registrando o primeiro sucesso de sua
carreira. Nas duas dezenas de discos que gravou a partir daí deu destaque a
compositores ligados às escolas de samba, como Candeia, e a sambistas do
asfalto, como João Nogueira e Eduardo Gudin, parceiros de seu futuro marido,Paulo Cesar Pinheiro. Participou dos grandes festivais de música popular, que
dominaram a audiência das TVs na década, defendendo sambas de cobras como EltonMedeiros e iniciantes como Paulinho da Viola.
Clara Nunes canta Conto de Areia, de Romildo e Toninho Nascimento:
Clara se encantou com a música brasileira que foi conhecendo nos terreiros e
quintais deste Brasil. Fez pesquisas em busca de conhecimento de nossas raízes
musicais, viajou pelo país, foi à África e fez a cabeça no Candomblé. Os anos
70 vão encontrá-la totalmente entregue ao ritmo. Em 1972 fez grande sucesso com
Ilu Ayê, um belo samba-enredo de Norival Reis que a Portela – escola à
qual se entregaria de corpo e alma – levou para a passarela no Carnaval naquele
ano. Mas outro samba do disco também assaltou as ondas do rádio: o embalado Ê
Baiana (de Baianinho, da Em Cima da Hora). As escolas de samba estavam na
moda e Clara navegou bem na maré. Da pequena escola de samba Tupi de Brás de
Pina, ela gravou o samba-enredo Seca no Nordeste, apresentado no
Carnaval de 1961, na Praça Onze. Além dos sambas de escola, gravou com enorme
sucesso sambas de terreiro de Candeia, sambas de “calçada” de João Nogueira,
canções de Caymmi, Caetano Veloso, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Wilson Moreira, Nei Lopes, Cartola e tantos outros grandes compositores. Tornou-se uma
diva da MPB, fez turnês pelo país e pelo exterior. O auge de sua carreira
talvez tenha começado com o lançamento do LP Alvorecer, em 1974, do
qual se extraíram os sucessos estrondosos Contos de Areia, da dupla
Romildo e Toninho Nascimento, e Menino Deus, de Mauro Duarte e P. C.
Pinheiro. Nesse mesmo ano, participou do espetáculo Brasileiro Profissão
Esperança, de Paulo Pontes, ao lado de Paulo Gracindo, resultando daí um
disco fantástico.
Disco fantástico: parceria com Paulo Gracindo
Clara era um sucesso fonográfico, destruindo um mito de que no Brasil mulher
não vendia discos. Ainda mais cantando samba. Pois Clara se tornou a maior
vendedora de discos da EMI-Odeon. Clara Nunes na EMI e Beth Carvalho na RCA
desmentiam os marqueteiros das gravadoras, as duas trafegando na mesma faixa de
mercado numa rivalidade saudável, em que a voz rouca e aconchegante de
Beth Carvalho contrastava com a exuberância de Clara, mostrando que não há
empecilho vocal para as boas intérpretes do samba. Logo as gravadoras
esqueceram da falsa verdade e tentaram sem muito sucesso lançar novas Claras no
mercado. Mas Clara era única. Em 1976 ela gravou o disco Canto das Três
Raças, que daria nome ao show que inaugurou seu Teatro Clara Nunes, no
Rio, projeto em parceria com Paulo Cesar Pinheiro. Seus shows eram sempre um
sucesso de fechar o comércio. Em 1977, Clara vendeu 800 000 cópias do LP Forças da Natureza. Um
recorde nacional. Por essa época, ela, Beth Carvalho e Alcione eram absolutas
em termos de venda. Garantia de lucro para suas gravadoras. E faziam shows sem
parar, numa agenda alucinante, que ia dos grandes teatros às quadras de escolas
de samba de São Paulo e Rio de Janeiro. Sempre com casa cheia. Eram as três
damas do samba, como Martinho da Vila, João Nogueira e Roberto Ribeiro
dominavam do lado masculino. Em 1981, Bibi Ferreira foi chamada a dirigir Clara
Mestiça, uma mostra da importância que ela havia adquirido no showbiz
nacional. Muito profissional e perfeccionista, Clara Nunes fez discos
impecáveis, tendo sido 16 de seus álbuns relançados em CD, em
1996, depois de remasterizados nos estúdios de Abbey Road.
1975: o casamento com P. C. Pinheiro
Seu último trabalho fonográfico foi o LP Nação, de 1982, no qual se
destacou o samba exatação Serrinha, homenagem aos velhos compositores
da escola Prazeres da Serrinha, de Madureira, de onde saíram os sambistas que
fundaram a Império Serrano. Carnavalesca amada pelos sambistas, ela não viu o
Carnaval seguinte. Esteve em coma por 28 dias, até a quarta-feira de cinzas de
1983, vítima de um choque anafilático, uma rara reação alérgica à anestesia,
ocorrência que pode se dar uma vez em 20 000 operações. Com o fim do Carnaval
daquele ano, morria Clara Guerreira. A Portela, que agora inaugura um monumento
em sua homenagem, não cansa de relembrá-la. Deu seu nome à rua onde está
instalado o Portelão, a quadra de sua escola em Madureira. E em 1984, inaugurou
o Sambódromo com o enredo Contos de Areia, uma homenagem a Paulo da
Portela, o fundador, a Natal, o legendário presidente de um braço só, e a Clara
Nunes, a Guerreira. Um nome a ser lembrado com carinho, como
faz agora sua Portela querida, inaugurando-lhe um monumento que a imortaliza no
terreiro do samba.
Nação: último disco
VEJA.COM 13/02/2011
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