quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

CLARA NUNES

A mineira guerreira


Por Julio Cesar Cardoso de Barros

No dia 5 de fevereiro de 2011, a Portela inaugurou o busto de Clara Nunes, na quadra da escola, localizada na Rua Clara Nunes, 81, em Madureira. Uma merecida homenagem àquela que foi uma das maiores cantoras que este país conheceu, e uma portelense de primeira linha. A voz doce e afinadíssima de Clara Nunes já seria o suficiente para colocá-la no hall da fama dos artistas que mais contribuíram para o engrandecimento da música popular brasileira. Mas ela ganha importância num outro campo. Ao lado de BethCarvalho, ela foi de grande importância no resgate de velhos compositores esquecidos, no incentivo aos jovens autores que iam surgindo e na valorização dos poetas das escolas de samba, da velha e da jovem guarda dos terreiros cariocas. Fez-se apresentar acompanhada de músicos vindos daquele ambiente, como Darcy da Mangueira, compositor e violonista, do conjunto Nosso Samba, formado por sambistas verdadeiros e de muitos outros músicos anônimos, os quais colocou lado a lado com artistas já consagrados. Conheça um pouco mais dessa figura tão importante na história da MPB e da escola de Madureira e Osvaldo Cruz.


Clara canta Portela na Avenida, de Mauro Duarte e P. C. Pinheiro):

A mineira Clara Francisca Gonçalves nasceu no antigo distrito de Cedro – hoje município de Caetanópolis - em Paraopeba, Minas Gerais, no dia 12 de agosto de 1942. E morreu no Rio, no dia 2 de abril de 1983, vítima de complicações durante uma cirurgia. Filha de um violeiro de Folia de Reis, ela ficou órfã muito pequena. Aos dez anos, o DNA musical se manifestou e ela ganhou um concurso de canto de sua cidadezinha, com a guarânia Recuerdos de Ypacaraí, um grande sucesso do rádio. Foi operária tecelã em sua terra natal e aos 16 anos mudou-se para Belo Horizonte, onde cursou o Normal e participou do coral a igreja de seu bairro. O rádio por essa época tocava Ângela Maria, Elizeth Cardoso, Carmem Costa, Dalva de Oliveira e outras grandes intérpretes dos anos dourados. Na capital mineira, participou de programas de calouros, sob o nome de Clara Francisca. Nos anos 60, namorando um irmão do roqueiro brazuca Eduardo Araújo, trocou o nome para Clara Nunes e foi apresentada ao meio artístico. Depois de participar do concurso A Voz de Ouro ABC, classificando-se na fase mineira e pegando um terceiro lugar na final, em São Paulo, foi contratada pela Rádio Inconfidência de Belo Horizonte e dedicou-se paralelamente à noite de BH, cantando em night clubs locais. A fama que foi adquirindo lhe valeu em 1963 a conquista de um espaço nobre na TV local, onde passou a comandar o programa Clara Nunes Apresenta, por onde passaram grandes nomes da MPB. Gravou pela primeira vez num pau-de-sebo, LP com vários cantores, gravado em Minas pela Rádio Inconfidência, em 1965.

Clara canta, de Candeia, O Mar Serenou:

No mesmo ano mudou-se para o Rio, onde se apresentou em programas de música ao vivo na TV e participou dos filmes Na Onda do Iê-Iê-Iê (1966), Carnaval Barra Limpa (1967) e Jovens Pra Frente (1968), apresentando números musicais que iam de marchinhas carnavalescas a baladinhas românticas típicas do movimento jovem, ao lado de nomes como Ed Lincoln, Wanderley Cardoso, Emilinha Borba, Ângela Maria, Altemar Dutra, Marlene, Rosemary, Jair Rodrigues e Dircinha Batista. Era a fina flor dos nossos melhores intérpretes, do romântico à Jovem Guarda. Contratada pela Odeon, sua gravadora para a vida toda, lançou o primeiro álbum em 1966, A Voz Adorável de Clara Nunes, no qual predominavam as canções românticas, boleros e sambas-canção. Seu namoro com esses gêneros durou pouco. Logo ela entrava naquele que seria o rumo definitivo de sua carreira. Sob influência de Adelzon Alves, um excelente produtor de discos e apresentador de programas de samba, Clara se interessou cada vez mais pelo ritmo. Seu segundo disco, Você Passa e Eu Acho Graça, marca sua estréia vigorosa no terreiro do samba, com a música de Ataulfo Alves e Carlos Imperial que deu título ao álbum registrando o primeiro sucesso de sua carreira. Nas duas dezenas de discos que gravou a partir daí deu destaque a compositores ligados às escolas de samba, como Candeia, e a sambistas do asfalto, como João Nogueira e Eduardo Gudin, parceiros de seu futuro marido,Paulo Cesar Pinheiro. Participou dos grandes festivais de música popular, que dominaram a audiência das TVs na década, defendendo sambas de cobras como EltonMedeiros e iniciantes como Paulinho da Viola.

Clara Nunes canta Conto de Areia, de Romildo e Toninho Nascimento:

Clara se encantou com a música brasileira que foi conhecendo nos terreiros e quintais deste Brasil. Fez pesquisas em busca de conhecimento de nossas raízes musicais, viajou pelo país, foi à África e fez a cabeça no Candomblé. Os anos 70 vão encontrá-la totalmente entregue ao ritmo. Em 1972 fez grande sucesso com Ilu Ayê, um belo samba-enredo de Norival Reis que a Portela – escola à qual se entregaria de corpo e alma – levou para a passarela no Carnaval naquele ano. Mas outro samba do disco também assaltou as ondas do rádio: o embalado Ê Baiana (de Baianinho, da Em Cima da Hora). As escolas de samba estavam na moda e Clara navegou bem na maré. Da pequena escola de samba Tupi de Brás de Pina, ela gravou o samba-enredo Seca no Nordeste, apresentado no Carnaval de 1961, na Praça Onze. Além dos sambas de escola, gravou com enorme sucesso sambas de terreiro de Candeia, sambas de “calçada” de João Nogueira, canções de Caymmi, Caetano Veloso, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Wilson Moreira, Nei Lopes, Cartola e tantos outros grandes compositores. Tornou-se uma diva da MPB, fez turnês pelo país e pelo exterior. O auge de sua carreira talvez tenha começado com o lançamento do LP Alvorecer, em 1974, do qual se extraíram os sucessos estrondosos Contos de Areia, da dupla Romildo e Toninho Nascimento, e Menino Deus, de Mauro Duarte e P. C. Pinheiro. Nesse mesmo ano, participou do espetáculo Brasileiro Profissão Esperança, de Paulo Pontes, ao lado de Paulo Gracindo, resultando daí um disco fantástico.

Disco fantástico: parceria com Paulo Gracindo


Clara era um sucesso fonográfico, destruindo um mito de que no Brasil mulher não vendia discos. Ainda mais cantando samba. Pois Clara se tornou a maior vendedora de discos da EMI-Odeon. Clara Nunes na EMI e Beth Carvalho na RCA desmentiam os marqueteiros das gravadoras, as duas trafegando na mesma faixa de mercado numa rivalidade saudável, em que a voz rouca e aconchegante de Beth Carvalho contrastava com a exuberância de Clara, mostrando que não há empecilho vocal para as boas intérpretes do samba. Logo as gravadoras esqueceram da falsa verdade e tentaram sem muito sucesso lançar novas Claras no mercado. Mas Clara era única. Em 1976 ela gravou o disco Canto das Três Raças, que daria nome ao show que inaugurou seu Teatro Clara Nunes, no Rio, projeto em parceria com Paulo Cesar Pinheiro. Seus shows eram sempre um sucesso de fechar o comércio. Em 1977, Clara vendeu 800 000 cópias do LP Forças da Natureza. Um recorde nacional. Por essa época, ela, Beth Carvalho e Alcione eram absolutas em termos de venda. Garantia de lucro para suas gravadoras. E faziam shows sem parar, numa agenda alucinante, que ia dos grandes teatros às quadras de escolas de samba de São Paulo e Rio de Janeiro. Sempre com casa cheia. Eram as três damas do samba, como Martinho da Vila, João Nogueira e Roberto Ribeiro dominavam do lado masculino. Em 1981, Bibi Ferreira foi chamada a dirigir Clara Mestiça, uma mostra da importância que ela havia adquirido no showbiz nacional. Muito profissional e perfeccionista, Clara Nunes fez discos impecáveis, tendo sido 16 de seus álbuns relançados em CD, em 1996, depois de remasterizados nos estúdios de Abbey Road.


No Japão, Canto das Três Raças, de Mauro Duarte e P. C. Pinheiro):

1975: o casamento com P. C. Pinheiro

Seu último trabalho fonográfico foi o LP Nação, de 1982, no qual se destacou o samba exatação Serrinha, homenagem aos velhos compositores da escola Prazeres da Serrinha, de Madureira, de onde saíram os sambistas que fundaram a Império Serrano. Carnavalesca amada pelos sambistas, ela não viu o Carnaval seguinte. Esteve em coma por 28 dias, até a quarta-feira de cinzas de 1983, vítima de um choque anafilático, uma rara reação alérgica à anestesia, ocorrência que pode se dar uma vez em 20 000 operações. Com o fim do Carnaval daquele ano, morria Clara Guerreira. A Portela, que agora inaugura um monumento em sua homenagem, não cansa de relembrá-la. Deu seu nome à rua onde está instalado o Portelão, a quadra de sua escola em Madureira. E em 1984, inaugurou o Sambódromo com o enredo Contos de Areia, uma homenagem a Paulo da Portela, o fundador, a Natal, o legendário presidente de um braço só, e a Clara Nunes, a Guerreira. Um nome a ser lembrado com carinho, como faz agora sua Portela querida, inaugurando-lhe um monumento que a imortaliza no terreiro do samba.


Nação: último disco

VEJA.COM 13/02/2011

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