Ivone Lara e Délcio Carvalho lançaram no dia 28
de setembro de 2010, no Teatro Carlos Gomes, na Praça Tiradentes, no
centro do Rio, o CD Bodas de Coral no Samba Brasileiro, com sucessos da
dupla e sambas inéditos, em comemoração aos 35 anos de parceria. O disco,
gravado em março de 2008, num show no Teatro Municipal de Niterói,
teve tiragem limitada e não foi colocado à venda em
lojas, quem pagou pelo ingresso teve direito a um raro exemplar. Este foi
só mais um evento na carreira exuberante dessa compositora que começou tarde na
profissão, mas muito cedo na arte. No dia 12 de novembro de 2013, Délcio, seu parceiro mais constante, morreu de câncer no Rio, aos 74 anos. Ivone ficou abalada, mas não esmoreceu.
Ivone Lara sempre foi uma mulher de sorriso fácil e personalidade
cativante, cuja vida foi cercada de música. Bisneta de escravos, ela nasceu no
dia 13 de abril de 1921, em Botafogo, no Rio de Janeiro, um bairro no qual já
havia uma certa mistura de classes sociais. O pai, João da Silva Lara, era
um carnavalesco e músico respeitado no lugar, tocava violão de sete cordas e
desfilava no Bloco dos Africanos e outros ranchos. A mãe, Emerentina Bento da
Silva, era pastora do Rancho Flor do Abacate e uma cantora de prestígio no
meio dos foliões. Mas para ganhar a vida enfrentava no tanque uma pilha de
roupas e ainda costurava. Aos três anos, Ivone perdeu o pai, que só tinha
27, num acidente com o caminhão no qual trabalhava como ajudante. A mãe estava
grávida de sua irmã Elza, que nasceu seis meses depois. Emerentina se casou de
novo e teve dois meninos, Nilo e Valdir, já falecidos. Órfã de pai,
Ivone foi morar na Tijuca, com a mãe, a irmã, o padrasto e os filhos deste
segundo casamento. Viveu oito anos no internato do Colégio Municipal Orsina da
Fonseca, uma instituição onde o rigor se juntava à eficiência na
educação de moças de variadas origens sociais. Lá, estudou música com
Lucília, mulher de Heitor
Villa-Lobos. “Fiz o primário e o anexo, que corresponde
hoje ao segundo grau, numa escola mantida pela prefeitura. Foi uma ótima
experiência”, disse. Chegou a cantar sob a regência do maestro, na Rádio Tupi,
quando participava do Orfeão dos Apiacás. Ivone tinha 17 anos quando sua
mãe morreu, aos 33. Ela saiu do colégio, já maior de idade, foi morar no
subúrbio de Inhaúma com um tio chorão, Dionísio, com quem aprendeu a tocar
cavaquinho. “Ele era muito amigo do Jacob do Bandolim e do Cândido Pereira da
Silva. Eu assistia às reuniões de choro promovidas por eles”.
Ivone e Délcio: 35 anos de parceria
O colégio fez diferença na sua formação. Aprendeu a transitar com
naturalidade entre as diversas camadas da população, desenvolveu um espírito
independente, propiciado pela distância da família, e tomou seu destino nas
mãos. Foi lá também que teve formação musical erudita, que acabou mesclando com
o tanto que aprendeu com os seus no ambiente familiar. Mas Ivone estava
decidida a ser independente de verdade e prestou concurso para a Escola
Técnica de Enfermagem e passou. “Queria estudar, mas não tinha condições
financeiras. Inscrevi-me e tive a felicidade de passar entre os dez primeiros.
Isso me deu direito a estudar, morar na escola, e ainda a uma ajuda de custo de
60 000 réis. Naquela época era muito dinheiro”.
Ivone canta Os Cinco Bailes da História do Rio:
Filha, prima e sobrinha de músicos, sua vida no samba não foi
fácil. A começar pelos parentes, que não lhe davam moleza. “Eu estava estudando
e a pessoa que me criava não queria que eu me perdesse, que me metesse nesse
meio (do samba). Achava que eu tinha que escolher uma coisa ou outra. Mas como
gostava de fazer os meus versos e minhas músicas, eu passava para ele e ele
apresentava como se fossem dele. Naquela época, eu não freqüentava a escola de
samba”, contou Ivone ao site Universia, provavelmente se referindo aos primos,
filhos de Dionísio, Hélio e Antonio (Mestre Fuleiro), que cantavam seus sambas
como se fossem deles. Mas com a maioridade tudo mudou. Em 1945, se mudou para
Madureira e casou-se com Oscar Costa, filho do presidente da escola Prazer da
Serrinha, embrião da Império Serrano. Além de sambista, o sogro era pai de
santo. Ivone mergulhou no mundo da cultura negra, frequentou o jongo, conheceu
as religiões de origem africana e deu espaço ao seu talento nos terreiros de
samba. Acabou por compor sambas para a escola (Nasci para Sofrer, 1947) e se impôs nas rodas de partido-alto.
Mas seus primeiros sambas foram apresentados no terreiro como
sendo do primo Fuleiro, que aos poucos revelou a verdadeira identidade da
autora e intercedeu para que ela fosse aceita num meio notadamente masculino.
Ivone Lara, que começara a desfilar na ala das baianas, foi então a primeira
mulher a integrar uma ala de compositores. “À vezes estou dormindo e a
melodia me surge no sonho. Ligo o gravador e canto, deixo lá registrado. É um
dom que Deus me deu. A música chega para mim como um presente”, diz ela de sua
vocação para a música. Em Madureira conheceu Silas de Oliveira e Mano Décio da
Viola, seus futuros parceiros da Império Serrano, onde venceu o concurso para o
samba-enredo de 1965, com Os Cinco Bailes da História do Rio (com
Silas e Bacalhau). Este samba é frequentemente incluído no rol dos mais belos
de todos os tempos. Mas, apesar de sua voz de pastora e um jeito de
cantar que ficou perdido nos carnavais do passado, quando o samba era levado na
garganta em meio à batucada, Ivone Lara acabou por se tornar uma profissional
de saúde e mãe de família dedicada, que só foi se entregar mais seriamente
à carreira musical depois de se aposentar como enfermeira e assistente social,
outra de suas formações.
Na ala das Baianas do Império Serrano, em 1972
Ivone encarava a carreira profissional na área de saúde como uma
coisa sagrada, quase tão sagrada como seus compromissos familiares. Motivo
de orgulho foi seu trabalho como auxiliar de Nise da Silveira, a médica
que usava a arte como coadjuvante importante no tratamento dos doentes mentais.
Apesar de Tiê, um de seus sucessos, ter sido composto quando ela tinha apenas 12
anos, o samba era para as horas de lazer, os finais de semana. Razão pela
qual só gravou aos 56 anos de idade, no LP O Botequim da Pesada, produzido por Sargenteli, com vários artistas, entre
eles Roberto Ribeiro, seu colega de Império Serrano. O primeiro álbum de
carreira surgiu em 1974, Samba, minha verdade, minha raiz. Seguiu-se
uma dezena de outros trabalhos, com destaque para os discos Sorriso de Criança (1979), Sorriso Negro (1982), Ivone Lara (1985), Bodas de Ouro (1997), que comemorou os 50 anos de carreira como compositora e Nasci Para Sonhar e Cantar (2002), que lhe valeu o
Prêmio Caras, de melhor disco do ano. A música daria título a um mestrado em
Antropologia Social de autoria de Mila Burns, cujo subtítulo era Dona Ivone Lara: a mulher no samba. Em 2010, o já
citado Bodas de Coral no Samba Brasileiro, com cinco músicas inéditas CD
comemorativo dos 35 anos de sua parceria com Délcio Carvalho, num lançamento
patrocinado pela fábrica de cosméticos Natura, que patrocinou uma tiragem de
três mil discos, não vendidos em loja.
Elizeth
Cardoso canta Minha Verdade:
Em 2002 ela ganhou também o Prêmio Shell de MPB, pelo conjunto da
obra, e foi recepcionada com uma grande festa, no Canecão, no Rio de Janeiro.
Em Bodas de Ouro
Ivone reuniu várias gerações de cantores para compartilhar o bolo. Samba de Roda pra Salvador
teve uma discreta participação de Gilberto Gil,
numa homenagem à Bahia que seguia com Danilo Caymmi (Oração da Mãe
Menininha) e a banda Ara Ketu (Alguém Me Avisou). Na ala carioca, estavam os sambistas Martinho da Vila, Zeca Pagodinho e Almir Guineto,
além de Beth Carvalho,
em Força da Imaginação, um belo
partido-alto que canta a esperança. A juventude esteve presente na voz do
reggae de Toni Garrido, então cantor da banda Cidade Negra. Foi um momento de
consagração da compositora e cantora que cravou sucessos na voz de intérpretes
como Martinho da Vila, Clara Nunes, Elizeth Cardoso, Caetano e Maria Bethânia.
Ivone compôs melodias que são conhecidas e cantaroladas de norte a sul do país.
É o caso de Alguém Me Avisou:
Eu vim de lá, eu vim
de lá pequenininho
Eu vim de lá pequenininho
Alguém me avisou
Pra pisar nesse chão devaraginho
Com Délcio Carvalho, seu parceiro mais constante, fez Acreditar,
sucesso nos anos 70 na voz do imperiano Roberto Ribeiro. Elizeth Cardoso gravou
dos dois Minha
Verdade. Em 1978, Bethânia incluiu em seu LP Álibi aquele
que foi um de seus maiores sucessos, o samba Sonho Meu, também com Délcio, que lhes
valeu o prêmio Sharp de Melhor Música. Com Jorge Aragão ela fez Enredo do Meu Samba, megassucesso na voz de Alcione, e Tendência, sucesso com o próprio Aragão. Os anos 80 a encontraram em
plena atividade, fazendo shows por toda parte. Sempre muito solicitada. “Nos
anos 1980, eu me apresentei no Teatro Opinião (depois Arena). Ficava em
Copacabana e era muito freqüentado por turistas. Fazia shows também na Pujol.
No Opinião, me apresentei com vários artistas, Leci Brandão, Roberto Ribeiro,
entre outros. Foram mais ou menos 14 anos, sempre fazendo roda de samba. Fiquei
conhecida por empresários estrangeiros que me levaram para o exterior para
fazer shows”. Ivone se referia certamente à Noitada de Samba, que no final da
década de 70 promovia no Opinião o encontro de nomes como Xangô da Mangueira,
Cartola, Nelson Cavaquinho, Martinho da Vila, Rosinha Valença, Paulinho da
Viola, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Beth Carvalho,
Guilherme de Brito, Elton Medeiros,
Baianinho, Délcio Carvalho e muitos outros nomes consagrados.
Muitos foram seus parceiros de renome, entre eles Mano Décio da
Viola (Agradeço a Deus); Hermínio Bello de Carvalho (Mas Quem Disse que Eu
Te Esqueço); Paulo César Pinheiro (Bodas de Ouro); Caetano Veloso (Força da Imaginação); Nelson Sargento (Nas Asas da Canção). Em dois depoimentos no Museu da Imagem e do Som, em 1978 e
2008, Ivone Lara contou sua linda trajetória musical e de vida. Uma vida para a
qual se preparou com independência e muito sofrimento. À perda prematura dos
pais, somou-se a perda do marido, em 1975, mesmo ano em que seu filho sofreu um
acidente grave, quando seu carro caiu do elevado da avenida Perimetral, no Rio,
causando-lhe graves sequelas.
Délcio Carvalho canta Acreditar:httpv://www.youtube.com/watch?v=NNEzQFkrLP4&feature=related
Sempre ativa, em 2009 gravou ao vivo o DVD Canto de Rainha: “Pra mim foi
uma surpresa muito grande. Não esperava gravar mais nada depois de tanto tempo
de dedicação à música”, disse ela, que reuniu seus intérpretes e amigos
para participar das gravações. Gente como Caetano Veloso, Beth
Carvalho, Délcio Carvalho, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Gilberto Gil e Zeca
Pagodinho. Em 2010, ela foi homenageada no 21º Prêmio de Música Brasileira
(antigo Sharp). Na noite de premiação, depois da entrega dos mimos aos
vencedores, Ivone recebeu homenagem de colegas de profissão, que a
reverenciaram com palavras e, principalmente, cantando suas músicas. Seus
sucessos foram cantados por Caetano Veloso (Acreditar), Roberta Sá (Cansei de Esperar Você), Arlindo Cruz (Canto de Rainha), Lenine (Alguém me Avisou), Délcio Carvalho e o grupo
Casuarina (Candeeiro da Vovó, Alvorecer e Sereia Guiomar).
Maria Bethânia e Gal Costa cantam Sonho
Meu:
DISCOGRAFIA
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