No dia 25 de agosto de 1990 morria Isabel Valença. Um mito entre os destaques
carnavalescos e campeã em desfile de fantasia do Teatro Municipal, no Rio, ela
ficou marcada como a mais perfeita Chica da Silva que já pisou o asfalto
durante o Carnaval. Isso em 1963, num tempo em que não se recrutavam destaques
entre os famosos da TV. Tempo em que os destaques saiam no chão,
desfilando entre passistas e alas de evolução e não sobre carros alegóricos. A
mulata era bonita, tinha personalidade e era a mulher do homem forte do
Salgueiro, Osmar Valença.
Carnaval de 1964: Rainha Rita de Vila Rica
Em 1964 ela rompeu barreira ao vencer o concurso de
fantasias na categoria luxo feminino no Teatro Municipal, um palco muito
distinto da passarela do samba, causando espanto e euforia. As madames e os
modistas veteranos do concurso torceram o nariz de início e protestaram ao
final, mas tiveram de engolir a façanha da moça do morro que se consagrou no
asfalto e desbancou a todos no salão. Num trabalho acadêmico sobre o
personagem, Paulo B. C. Schettino, mestre em Cinema e doutor em Ciências da
Comunicação, assim descreveu a glória: “Da passarela do samba, leia-se, o
asfalto da avenida, (Chica da Silva) salta para os desfiles de fantasia de
clubes fechados, em função do brilho, repercussão e o sucesso alcançados. Foi a
glória de uma escola de samba – o Salgueiro - e de Isabel Valença, a
passista que lhe emprestou o corpo”. Segundo Cíntia Rabaçal, “a mulata Isabel
Valença foi a primeira cidadã afro-brasileira a entrar no baile mais chique e
concorrido da cidade, o Baile do Municipal, disputando e vencendo o concurso de
fantasias que acontecia durante o baile, numa belíssima representação de
(sempre ela…) Chica da Silva, enredo da escola naquele ano”.
Capa da revista Fatos e Fotos
Mas na verdade, no 28º Baile de Gala do Teatro Municipal do Rio,
Isabel Valença desfilou fantasiada de Rainha Rita de Vila Rica, do enredo Chico Rei, do Carnaval de
1964. A confusão dos estudiosos se deve talvez ao fato de que a partir daquele
desfile de 1963 Isabel passou a ser chamada de a Chica da Silva do
Salgueiro. Quando ela despontava na avenida, o público gritava “lá vem a Chica
da Silva”.
Um destaque inigualável
O jornalista carioca Claudio Vieira narra a performance que a
consagrou, fundindo a imagem da sambista com a personagem, numa coreografia
desenvolvida exclusivamente para o desfile por Mercedes Baptista, primeira
bailarina negra do corpo de baile do Municipal: “O Salgueiro investira 40
milhões e 200 mil cruzeiros naquele desfile. Só a fantasia de Chica da Silva,
usada por Isabel Valença, custara 1 milhão e 300 mil. A peruca, criação de
Paulo Carias, media um metro e dez de altura, ornada de pérolas.
Manchete (fevereiro/1964)
A roupa tinha
uma cauda de sete metros de comprimento e anáguas com armação de aço, quando o
normal seria arame. Chica seria representada pela atriz Zélia Hoffman,
famosa vencedora de concursos de fantasias do Teatro Municipal. Mas, ao ver o
figurino, desistiu, optando por fantasia mais leve. Osmar (o marido) tinha
pensado na atriz porque sua mulher, Isabel, primeiro destaque da escola, tinha
feito obrigação para Iansã e Omulu, não podendo sair no carnaval. Devido à
insistência de Arlindo (Rodrigues, que junto com Fernando Pamplona montara o
enredo), Isabel consultou seu pai-de-santo e este permitiu que fizesse nova
obrigação. Foi assim que Isabel passou a ser conhecida como Chica da Silva”.
Assim, a sambista e a personagem se fundiram numa só lenda carnavalesca. Ao
ponto de Isabel ser convidada para, vestida de Chica da Silva, participar da
recepção a Lord Moutbatten, o bisneto da Rainha Vitória, que visitava o país.
Mas a vitória no Municipal da moça oriunda do morro, da mulata da escola de
samba, só foi possível por interferência do governador Carlos Lacerda, que
anulou a decisão dos organizadores do concurso, que queriam impedir a sambista
de competir naquele palco privilegiado. A conquista de Isabel foi sobretudo uma
vitória da teimosia, da altivez, que ela exibiria ao longo de sua vida.
2005: exposição fotográfica relembra a destaque
Mas sua carreira não foi de uma personagem só. Em 1966, ela
foi a Marquesa de Santos. O jornalista Gustavo Melo, ex-diretor cultural do
Salgueiro, narra a apresentação espetacular da destaque como a
amante de D. Pedro I, no enredo Amores Célebres do Brasil, em que contracenou com Clóvis Bornay, museólogo e carnavalesco
dos desfiles de fantasia do Municipal, que além de montar o enredo saiu como o
imperador, fazendo par com Isabel: “Isabel mirava seu olhar no julgador,
hipnotizado pela postura da destaque. Até que alguém aplaudiu a performance,
atitude seguida por todos próximos à cabine. A destaque continuava imóvel e
cada vez mais altiva. Queria mais. Havia um gran finale a cumprir. Eis que todos se levantaram, aplaudiram de pé e
ovacionaram em êxtase a personagem imortalizada na história como a amante do
Imperador. E Isabel, como uma grande atriz, abriu um largo sorriso, reverenciou
a todos que a aplaudiam calorosamente, saiu de cena e seguiu para mais uma
consagração nos braços do povo”, contou Melo. A performance de Isabel não foi o
suficiente para evitar que o Salgueiro, campeão de 1965, amargasse um mirrado
quinto lugar.
Chica da Silva com Lord Mountbatten (1963)
Em 1967, três anos depois do golpe militar, o Salgueiro trouxe o enredo História da liberdade no Brasil, um carnaval vigiado desde os ensaios pelos órgãos de segurança. A
agremiação da Tijuca ficou em terceiro lugar, mas Isabel mais uma vez deixou
sua marca, vestida de Princesa Isabel numa fantasia em que o dourado
contrastava com o vermelho e o branco da escola, faiscando com seus vidrilhos e
pedrarias. No ano seguinte, ela foi Ana Jacinta de São José, no enredo Dona Beija, a
feiticeira de Araxá, desenvolvido por Fernando Pamplona,
com novo festival de elogios à sua performance. No final de 1968, se
especulava que Natal levaria a Portela para desfilar em São Paulo, inconformado
com os julgamentos dos últimos carnavais cariocas. Ao mesmo tempo, indiferente
à polêmica, o Salgueiro preparava o carnaval de Arlindo Rodrigues Bahia de Todos os
Deuses,
para o desfile de 1969. Enquanto a imprensa
repercutia a polêmica junto a outros dirigentes cariocas, que falavam até em
suspensão dos desfiles, e confirmava com Paulo Henrique Meinberg,
secretário nunicipal de Turismo de São Paulo, o convite à escola de Osvaldo
Cruz, a reportagem flagrava Isabel em sua casa bordando ela própria uma
fantasia luxuosa de destaque principal da escola, indiferente à confusão
dos cartolas.
Rainha de França
Ela foi ainda outros grandes vultos femininos no asfalto da
passarela do samba. Foi Tia Ciata (1970), Ana Paz, amante de Maurício de Nassau
(1971), Rainha de França, em 1974, ano em que a escola venceu com o enredo
O Rei de França na
Ilha da Assombração, de Joãozinho Trinta, que mais tarde
se lembraria assim dos detalhes: ”Eu fiz um grande vestido para a Isabel
Valença, que começava nas palmeiras, sete negros carregavam sete pontas do
vestido dela, que terminava nos bordados”. O carnavalesco colocou-a,
como aos demais destaques, pela primeira vez em seus carnavais, em cima de um
carro alegórico. Ela foi também Moça Branca (a cachaça), no Carnaval de
1977, fantasia lindíssima que lhe valeu o Estandarte de Ouro de Destaque
Feminino da Rede Globo. Foram muitas as personagens que a cabrocha representou
com qualidade na avenida, culminando no Carnaval de 1987, em que ela saiu
como ela mesma, Isabel Valença, no carro de abertura do enredo E Por Que Não?,
em que o Salgueiro fazia uma auto-homenageava.
Chica da Silva (1963)
Em seu último
desfile, em 1990, Isabel Valença voltou a vestir-se de Rainha de França, no
enredo Sou Amigo do Rei, de Rosa Magalhães, que valeu à escola um
terceiro lugar. Isabel morreu no dia 25 de agosto daquele ano, de
arteriosclerose coronária. Em 2005, o Salgueiro promoveu uma grande exposição
fotográfica sobre a carreira de seu mais espetacular destaque.
VEJA.COM 27/12/2010
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