segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

ISABEL VALENÇA


Um mito do glorioso Salgueiro



    Por Julio Cesar Cardoso de Barros

No dia 25 de agosto de 1990 morria Isabel Valença. Um mito entre os destaques carnavalescos e campeã em desfile de fantasia do Teatro Municipal, no Rio, ela ficou marcada como a mais perfeita Chica da Silva que já pisou o asfalto durante o Carnaval. Isso em 1963, num tempo em que não se recrutavam destaques entre os famosos da TV. Tempo em que os destaques saiam no chão, desfilando entre passistas e alas de evolução e não sobre carros alegóricos. A mulata era bonita, tinha personalidade e era a mulher do homem forte do Salgueiro, Osmar Valença. 


    Carnaval de 1964: Rainha Rita de Vila Rica


Em 1964 ela rompeu barreira ao vencer o concurso de fantasias na categoria luxo feminino no Teatro Municipal, um palco muito distinto da passarela do samba, causando espanto e euforia. As madames e os modistas veteranos do concurso torceram o nariz de início e protestaram ao final, mas tiveram de engolir a façanha da moça do morro que se consagrou no asfalto e desbancou a todos no salão. Num trabalho acadêmico sobre o personagem, Paulo B. C. Schettino, mestre em Cinema e doutor em Ciências da Comunicação, assim descreveu a glória: “Da passarela do samba, leia-se, o asfalto da avenida, (Chica da Silva) salta para os desfiles de fantasia de clubes fechados, em função do brilho, repercussão e o sucesso alcançados. Foi a glória de uma escola de samba – o Salgueiro - e de Isabel Valença, a passista que lhe emprestou o corpo”. Segundo Cíntia Rabaçal, “a mulata Isabel Valença foi a primeira cidadã afro-brasileira a entrar no baile mais chique e concorrido da cidade, o Baile do Municipal, disputando e vencendo o concurso de fantasias que acontecia durante o baile, numa belíssima representação de (sempre ela…) Chica da Silva, enredo da escola naquele ano”. 




    Capa da revista Fatos e Fotos

Mas na verdade, no 28º Baile de Gala do Teatro Municipal do Rio, Isabel Valença desfilou fantasiada de Rainha Rita de Vila Rica, do enredo Chico Rei, do Carnaval de 1964. A confusão dos estudiosos se deve talvez ao fato de que a partir daquele desfile de 1963 Isabel passou a ser chamada de a Chica da Silva do Salgueiro. Quando ela despontava na avenida, o público gritava “lá vem a Chica da Silva”.

                    Um destaque inigualável

O jornalista carioca Claudio Vieira narra a performance que a consagrou, fundindo a imagem da sambista com a personagem, numa coreografia desenvolvida exclusivamente para o desfile por Mercedes Baptista, primeira bailarina negra do corpo de baile do Municipal: “O Salgueiro investira 40 milhões e 200 mil cruzeiros naquele desfile. Só a fantasia de Chica da Silva, usada por Isabel Valença, custara 1 milhão e 300 mil. A peruca, criação de Paulo Carias, media um metro e dez de altura, ornada de pérolas.

    Manchete (fevereiro/1964)


 A roupa tinha uma cauda de sete metros de comprimento e anáguas com armação de aço, quando o normal seria arame. Chica seria representada pela atriz Zélia Hoffman, famosa vencedora de concursos de fantasias do Teatro Municipal. Mas, ao ver o figurino, desistiu, optando por fantasia mais leve. Osmar (o marido) tinha pensado na atriz porque sua mulher, Isabel, primeiro destaque da escola, tinha feito obrigação para Iansã e Omulu, não podendo sair no carnaval. Devido à insistência de Arlindo (Rodrigues, que junto com Fernando Pamplona montara o enredo), Isabel consultou seu pai-de-santo e este permitiu que fizesse nova obrigação. Foi assim que Isabel passou a ser conhecida como Chica da Silva”. Assim, a sambista e a personagem se fundiram numa só lenda carnavalesca. Ao ponto de Isabel ser convidada para, vestida de Chica da Silva, participar da recepção a Lord Moutbatten, o bisneto da Rainha Vitória, que visitava o país. Mas a vitória no Municipal da moça oriunda do morro, da mulata da escola de samba, só foi possível por interferência do governador Carlos Lacerda, que anulou a decisão dos organizadores do concurso, que queriam impedir a sambista de competir naquele palco privilegiado. A conquista de Isabel foi sobretudo uma vitória da teimosia, da altivez, que ela exibiria ao longo de sua vida.


    2005: exposição fotográfica relembra a destaque

Mas sua carreira não foi de uma personagem só. Em 1966, ela foi a Marquesa de Santos. O jornalista Gustavo Melo, ex-diretor cultural do Salgueiro,  narra a  apresentação espetacular da destaque como a amante de D. Pedro I, no enredo Amores Célebres do Brasil, em que contracenou com Clóvis Bornay, museólogo e carnavalesco dos desfiles de fantasia do Municipal, que além de montar o enredo saiu como o imperador, fazendo par com Isabel: “Isabel mirava seu olhar no julgador, hipnotizado pela postura da destaque. Até que alguém aplaudiu a performance, atitude seguida por todos próximos à cabine. A destaque continuava imóvel e cada vez mais altiva. Queria mais. Havia um gran finale a cumprir. Eis que todos se levantaram, aplaudiram de pé e ovacionaram em êxtase a personagem imortalizada na história como a amante do Imperador. E Isabel, como uma grande atriz, abriu um largo sorriso, reverenciou a todos que a aplaudiam calorosamente, saiu de cena e seguiu para mais uma consagração nos braços do povo”, contou Melo. A performance de Isabel não foi o suficiente para evitar que o Salgueiro, campeão de 1965, amargasse um mirrado quinto lugar.

    Chica da Silva com Lord Mountbatten (1963)

Em 1967, três anos depois do golpe militar, o Salgueiro trouxe o enredo História da liberdade no Brasil, um carnaval vigiado desde os ensaios pelos órgãos de segurança. A agremiação da Tijuca ficou em terceiro lugar, mas Isabel mais uma vez deixou sua marca, vestida de Princesa Isabel numa fantasia em que o dourado contrastava com o vermelho e o branco da escola, faiscando com seus vidrilhos e pedrarias. No ano seguinte, ela foi Ana Jacinta de São José, no enredo Dona Beija, a feiticeira de Araxá, desenvolvido por Fernando Pamplona, com novo festival de elogios à sua performance. No final de 1968, se especulava que Natal levaria a Portela para desfilar em São Paulo, inconformado com os julgamentos dos últimos carnavais cariocas. Ao mesmo tempo, indiferente à polêmica, o Salgueiro preparava o carnaval de Arlindo Rodrigues Bahia de Todos os Deuses, para o desfile de 1969Enquanto a imprensa repercutia a polêmica junto a outros dirigentes cariocas, que falavam até em suspensão dos desfiles, e confirmava com Paulo Henrique Meinberg, secretário nunicipal de Turismo de São Paulo, o convite à escola de Osvaldo Cruz, a reportagem flagrava Isabel em sua casa bordando ela própria uma fantasia luxuosa de destaque principal da escola, indiferente à confusão dos cartolas.

    Rainha de França

Ela foi ainda outros grandes vultos femininos no asfalto da passarela do samba. Foi Tia Ciata (1970), Ana Paz, amante de Maurício de Nassau (1971), Rainha de França, em 1974, ano em que a escola venceu com o enredo O Rei de França na Ilha da Assombração, de Joãozinho Trinta, que mais tarde se lembraria assim dos detalhes: ”Eu fiz um grande vestido para a Isabel Valença, que começava nas palmeiras, sete negros carregavam sete pontas do vestido dela, que  terminava nos bordados”. O carnavalesco colocou-a, como aos demais destaques, pela primeira vez em seus carnavais, em cima de um carro alegórico. Ela foi também Moça Branca (a cachaça), no Carnaval de 1977, fantasia lindíssima que lhe valeu o Estandarte de Ouro de Destaque Feminino da Rede Globo. Foram muitas as personagens que a cabrocha representou com qualidade na avenida, culminando no Carnaval de 1987, em que ela saiu como ela mesma, Isabel Valença, no carro de abertura do enredo E Por Que Não?, em que o Salgueiro fazia uma auto-homenageava. 

    Chica da Silva (1963)

Em seu último desfile, em 1990, Isabel Valença voltou a vestir-se de Rainha de França, no enredo Sou Amigo do Rei, de Rosa Magalhães, que valeu à escola um terceiro lugar. Isabel morreu no dia 25 de agosto daquele ano, de arteriosclerose coronária. Em 2005, o Salgueiro promoveu uma grande exposição fotográfica sobre a carreira de seu mais espetacular destaque.


VEJA.COM 27/12/2010



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