José Bispo Clementino dos Santos, o Jamelão, o maior puxador de samba-enredo
de todos os tempos e um insuperável intérprete de Lupicínio Rodrigues, morreu na madrugada de 14 de junho de 2008, aos 95 anos, de falência múltipla dos órgãos, na
Clínica de Saúde Pinheiro Machado, no Rio. Jamelão era diabético e hipertenso e
havia sofrido dois derrames. Carioca do bairro de São Cristóvão, onde nasceu no dia 12 maio de 1913, Jamelão foi um mangueirense fiel. Ingressou na escola nos anos 30
do século passado, tocando tamborim. Logo descobriu-se cantor, vocação que
desenvolveu nas gafieiras dos subúrbios do Rio. Entrou para o rádio como calouro
em programas de auditório e acabou contratado no final da década de 40 pela
extinta Rádio Clube do Brasil. Foi crooner da famosa Orquestra Tabajara, do
maestro Severino Araújo, e construiu uma sólida carreira em discos, gravando
sambas dos maiores nomes da era de ouro da música popular brasileira. Mas foi
como cantor de sambas-canção e intérprete de Lupicínio que ele se consagrou
junto ao público e à crítica. “É o cantor que expressa melhor o desespero que eu
procuro colocar em algumas letras”, dizia Lupicínio. Do compositor gaúcho ele
gravou sucessos como Ela Disse-me Assim e Esses Moços.
Imortalizou também clássicos de outros grandes compositores do gênero, como
Matriz ou Filial, de Lúcio Cardim. Apesar de grande intérprete de
sambas-canção, talvez o maior de todos, Jamelão ficou muito popular como
puxador-de-samba da Mangueira, função que exerceu por quase 60 anos.
Ouça Ela Disse-me Assim:
Só os problemas de saúde o afastaram do microfone. Em 2007, devido a dois
derrames sofridos em pouco mais de um mês, entre outubro e novembro do ano
anterior, não pôde puxar o samba da escola. Até então, seu ritmo era intenso e o
descuido com a saúde permanente. “Bebi até três meses atrás, mas o homem do
jaleco me mandou parar”, disse em outubro de 1999. Em setembro de 2006, “cantou
por quase três horas no Bar Brahma, esticou conversa com os fãs por mais uma
hora e terminou a madrugada em um restaurante, onde devorou um cheese-picanha e
um cheese-salada” (Monica Bergamo, Folha de S. Paulo). “Eu só paro no dia em que
morrer. Enquanto estiver vivo e tiver garganta, estou aí…”, dizia. O artista
desprezava a denominação tradicional de “puxador-de-samba”. “Puxador não, sou
cantor!”, resmungava.
Ouça Jamelão cantando o samba-enredo Lendas do
Abaeté (1973):
Não há como não atribuir essa implicância à rabugice, uma de suas marcas
registradas. Mas o fato é que enquanto os puxadores de samba funcionam como
halterofilistas da voz, botando força no ato, Jamelão cantava com uma técnica
própria dos cantores líricos, com um bom trabalho de respiração, diafragma e
dicção, o que o ajudou a preservar a qualidade de sua voz até o fim da vida. O
mau humor o acompanhou ao longo da carreira. “Não sou galo para cantar de
graça”, reclamou em 1989 dos “trocados” que recebeu para gravar o samba-enredo
de sua escola. Em março de 2000, diante da insistência da Mangueira em
homenageá-lo no carnaval seguinte, foi ríspido: “Não quero ser enredo de nada,
nem agora nem nunca”.
Rabugento: o mau humor era sua marca
A escola acabou desfilando com o enredo A Seiva da
Vida, de Max Lopes, sobre as “conquistas e descobertas dos fenícios”.
Convidado a se sentar, reagia, traindo uma homofobiazinha típica de sua geração:
“Não me sento, me acomodo. Sentar é outro verbo”. Unanimidade dentro e fora do samba, o cantor recebeu em 2001 a medalha da
Ordem do Mérito Cultural, entregue pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Na cerimônia, não abriu mão dos elásticos que usava na mão esquerda, como um TOC. Por essa época ele se queixava da falta de gravadora e buscava um empresário
para agenciá-lo, já que os shows haviam-se escasseado. Em julho daquele ano,
depois de obter alta no Instituto Dante Pazzanese, “onde ficara internado por
mais de três meses com problemas vasculares, que causaram a proliferação de
feridas em suas pernas”, Jamelão resmungava na Gazeta Mercantil: “Se eu não
catar milho todo dia, ninguém come lá em casa”.
A vida dura que conhecera desde pequeno, no Engenho Novo, vendendo jornal,
engraxando sapatos ou como operário na fábrica de tecidos Confiança, a dos três
apitos cantados por Noel, o rondava novamente, muito embora fosse funcionário
público aposentado da Secretaria de Segurança do Estado do Rio. O disco que
lançara no ano anterior Por Força do Hábito, pela Som Livre, não havia
funcionado bem, apesar de sua disposição para divulgá-lo. “É só me chamar que eu
vou, para emissoras de rádio, televisão, entrevistas, shows. Tô nessa!”, disse
em entrevista ao jornal O Globo. Com Jamelão desapareceu o último grande cantor
de sambas-canção em atividade e um tipo de puxador de samba de escola que deixou
raríssimos seguidores, todos eles pouco expressivos.
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