terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

PAULINHO DA VIOLA 2

Estou resistindo



Entrando no clube dos 100 000 discos vendidos, o compositor fala do sucesso, de computadores e da onda dos pagodes

Por Julio Cesar Cardoso de Barros e Okky de Souza

Aos 54 anos, Paulo César Batista de Faria, o Paulinho da Viola, vive seu melhor momento profissional. O disco Bebadosamba, lançado no final do ano passado, é o maior sucesso de sua carreira. Vendeu até agora mais de 100 000 cópias, o que lhe valeu seu primeiro disco de ouro. Seu novo show, com o qual viajará em turnê pelo país, já teve lotação esgotada no Rio de Janeiro e em São Paulo. Paulinho da Viola cresceu num ambiente de roda de choro. Seu pai, César Faria, que hoje toca com ele, integrou o lendário conjunto Época de Ouro. A casa da família, no bairro carioca de Botafogo, era freqüentada por nomes como Pixinguinha. O primeiro sucesso aconteceu na Portela, onde venceu o concurso de samba-enredo de 1966. Nome indiscutível do primeiro time da MPB, é autor de clássicos como Sinal Fechado e Foi um Rio que Passou em Minha Vida. Conhecido também por ser o mais elegante dos sambistas, na semana passada Paulinho falou a VEJA de seu processo de criação, de computadores e de sua admiração pelo pagode do É o Tchan.

Veja — Com Bebadosamba, pela primeira vez você cruzou a marca das 100.000 cópias vendidas, seus shows nunca estiveram tão cheios. Como explicar isso?
Paulinho — Muitos de meus discos tiveram vendagem razoável no passado. Como o mercado cresceu muito nos últimos anos, é possível até que 50.000 cópias vendidas há vinte anos tivessem quase o mesmo significado de 100000 agora. Em contrapartida, cheguei a fazer shows sem lucro nenhum, mas desde os anos 80 tenho reunido platéias boas, às vezes excepcionais. Acho que depois de um certo tempo de carreira o artista tem um público fiel que vai a seus shows mesmo que ele não tenha um disco novo de sucesso. É claro que gosto de ter aceitação popular, já fiz muita caitituagem nas rádios. Mas quem faz disco pensando em vender é o produtor, o pessoal de marketing da gravadora. Um artista não consegue fazer uma música apenas pensando em vendê-la.

Veja — Como você compõe seus sambas?
Paulinho — Eles nascem de várias maneiras. O Timoneiro, do disco novo, surgiu de uma forma estranhíssima. Meu parceiro Hermínio Bello de Carvalho havia me mandado a letra por fax. Eu guardei-a para colocar música, num dia qualquer, mas por acaso memorizei os primeiros versos. Certo dia, quando estava gravando um disco, resolvemos fazer um intervalo. Os técnicos e os músicos do conjunto saíram para um lanche. Eu me demorei um pouco mais no estúdio e, quando estava indo pegar o paletó, aconteceu uma coisa incomum: numa fração de segundo a melodia me veio pronta na cabeça, com os versos do Hermínio. Dei meia-volta, coloquei uma fita no gravador e ela estava pronta. Já para compor a música Pecado Capital, tema da novela homônima, foi um sufoco. O produtor da novela me convidou para a tarefa e me passou uma pequena sinopse. Eu engavetei o papel para pensar no projeto mais à frente. No dia seguinte ele me liga: “Já está pronto?” Fiquei em pânico. Terminei a música, gravei rapidamente. Antes de terminar, já havia um motoqueiro me esperando na portaria para levá-la à Globo.

Veja — Como surgiu Bebadosamba, faixa-título do disco?
Paulinho — Esta levou um ano e meio para ficar pronta e foi a última a ser gravada. Eu tinha o título mas não tinha a música, essa é que é a verdade. Havia criado essa expressão, bebadosamba, amparado em minhas memórias de um sambista que conheci na juventude, lá em Jacarepaguá. Ele era um típico componente das escolas do passado, sei que está vivo até hoje e sua imagem sempre aparece em minha cabeça. Vejo-o andando pela rua, com sua cuíca, depois de uma noite inteira de ensaio, um pouco embriagado tanto pela bebida como pelo samba, parando aqui e ali, ainda cantando só para ele próprio ouvir. Transformei-o num personagem, o Boca, que encarno na primeira parte do meu show. Os versos da música demoraram muito a surgir. Eu sabia o que queria dizer, mas não conseguia fazer a letra. Era uma angústia. A letra surgiu quando o disco estava pronto. Teria sido horrível se essa música tivesse ficado de fora.

Veja — O que acha dos conjuntos de pagode que hoje estão no auge do sucesso?
Paulinho — Muita gente fala mal desses grupos, e realmente tem muita coisa ruim. Por outro lado, acho uma coisa pretensiosa falar em samba autêntico, samba verdadeiro, em contraposição à música feita por esses grupos. Eu nunca uso essas expressões. O samba é dinâmico, tem muitas nuances, muitos estilos. Ciro Monteiro, Jorge Veiga e Cartola, por exemplo, são mundos, correntes, muito diferentes entre si. Dentro do pagode tem coisas interessantes, fortes. Dizer que o pagode vende muito, é comercial e portanto não presta é um erro. Deve-se ouvi-lo com mais cuidado.

Veja — Quem é bom no pagode atual?
Paulinho — Gosto do Katinguelê, do Raça e também do É o Tchan, ex-Gera Samba. Alguém já parou para ouvir o ritmo que existe ali além do bumbum da Carla Perez? É um ritmo muito gostoso, e você realmente não consegue ficar parado. Tem uma coisa meio baiana, com atabaques, que é muito legal, um aspecto do samba muito antigo. Eles fazem um bom samba-de-roda.

Veja — Mas o rebolado não é pura apelação?
Paulinho — É uma irreverência, um deboche que existe também em outras manifestações das quais ninguém fala mal. O Casseta & Planeta usa esse mesmo tipo de coisa. A nudez não faz parte do repertório de truques do rock? Não havia gente pelada no festival de Woodstock e na peça Hair, por exemplo? Eu tenho uma filha que só ouve pagode e sinto que o importante para esse público é a possibilidade de dançar, mais do que tudo.

Veja — O Brasil tem uma música popular diversificada e é o sexto maior mercado de discos do mundo. Por que sempre que um gênero musical está em alta no país os adeptos dos demais gêneros procuram denegri-lo?
Paulinho — Isso acontece porque nosso mercado musical é menor do que parece. Na realidade, ali só há espaço para um tipo de música de cada vez. Os investimentos são todos feitos numa só tendência, e quem está fora da onda não tem chance. As gravadoras perdem interesse, a imprensa pára de divulgar seu trabalho, os críticos mostram de má vontade. Antigamente eu podia visitar um programa de rádio ou TV e falar horas, mostrar minhas músicas, divulgar meu trabalho. Era também muito mais fácil conseguir espaço nos jornais e nas revistas. Hoje essa disponibilidade se reduziu drasticamente. O espaço tornou-se mais raro e mais caro. No caso da música, ficou difícil promover dois ou três gêneros ao mesmo tempo. Um caso que ilustra bem isso é o do cantor Agepê. No início dos anos 80 o grande investimento era no rock nacional e mesmo assim Agepê se transformou num grande ídolo e vendeu milhões de discos. Foi um sucesso espontâneo, que hoje não aconteceria. As coisas atualmente são muito mais planejadas. Nessa situação, os artistas em baixa atacam quem está em alta, até para se justificar.

Veja — Artista bom não aparece sem um grande esquema para ampará-lo?
Paulinho — Gravar CD, hoje, qualquer um grava. Mas fazer com que ele desperte a atenção do público virou uma operação complexa. Os lançamentos são muitos. Os jornais e revistas têm de filtrar os discos que serão comentados. A distribuição também é uma tarefa complicada mesmo para as grandes gravadoras. Canso de ver gente que reclama de não encontrar meu último disco nas lojas.

Veja — A TV é fundamental para o sucesso?
Paulinho — Ela tem um imenso poder de fogo, mas cria um sucesso quando faz repetição, quando apresenta um mesmo artista, com uma mesma música, várias vezes, num curto espaço de tempo. Hoje, na TV, não há programas de qualidade para o músico cantar, exibir-se. Ou suas músicas tocam nas novelas, ou ele aparece nos programas de entrevistas. É curioso, mas é mais fácil um músico aparecer na TV dando entrevistas do que cantando. Você já teve uma época de programas musicais, de festivais, também. Hoje, isso acabou.

Veja — Você se considera um bom cantor?
Paulinho — Eu não me considero um cantor, mas um compositor que canta. Muitos intérpretes querem que o público preste mais atenção na sua voz do que nas músicas que interpretam. Comigo não é assim. Em shows ou em discos, minha voz é apenas um veículo para mostrar as músicas e as emoções que elas encerram. Não que eu queira me anular, mas minha intenção é fazer com que as pessoas sintam as músicas da maneira que eu as sinto. É por isso que muitas vezes canto de olhos fechados. Estou inteiramente concentrado na música.

Veja — Costuma ficar tenso antes de entrar em cena?
Paulinho — Nas estréias fico muito nervoso. Acontece até de esquecer a letra de uma música. Também fico muito atrapalhado quando alguém da platéia se manifesta na hora errada, um bêbado, por exemplo. Mas a pior experiência que vivi num palco foi num show numa casa noturna pequena, o 150 do hotel Maksoud, em São Paulo. Um sujeito que estava na primeira mesa ficou de costas o tempo todo para mim. Não dizia uma palavra, não estava conversando, não fazia gestos de desagrado. Apenas achou mais confortável ficar de costas. O show inteiro, até o final. Isso me perturbou de uma forma devastadora.

Veja — O samba já foi um ritmo popular e visto com preconceito fora dos morros. Como foi aceito pela classe média?
Paulinho — Os festivais dos anos 60 ajudaram bastante, mas existe uma pessoa que teve um papel importante. Foi Nara Leão. Depois da bossa nova, ela foi procurar compositores como Zé Keti e Nelson Cavaquinho. Lançou aquele disco em que cantava Luz Negra e Diz que Fui por Aí, que foi um sucesso nacional. De certo modo João Gilberto já havia descoberto o samba cantando, por exemplo, Geraldo Pereira. Mas a Nara deu uma contribuição muito forte para o samba. Com ela vieram shows como Opinião e Rosa de Ouro.

Veja — São Paulo é mesmo o túmulo do samba, como teria decretado Vinicius de Moraes?
Paulinho — O mal do samba paulista é ser um desconhecido no âmbito da cultura brasileira. No Rio de Janeiro a história dos negros, sua aculturação, seus costumes, sua arte, tudo isso foi amplamente estudado e documentado. Há livros e estudos sobre o nascimento do samba, sua evolução, o surgimento das escolas. São Paulo não tem esse tipo de registro e, se tem, ele não é divulgado e estudado. Eu ouço falar muito do Bixiga, bairro onde há uma tradição forte de samba, mas não chega aos cariocas e aos brasileiros em geral o que foi ou é produzido ali.

Veja — Como são hoje suas relações com Gilberto Gil e Caetano Veloso depois que a prefeitura do Rio pagou 100 000 reais a eles e 30 000 a você naquele réveillon de 1995?
Paulinho — Desde então não mais nos falamos ou nos encontramos.

Veja — No ano passado uma cervejaria recusou o cachê que você pedira, de 400 000 reais, para vincular seus produtos à sua imagem por seis meses. O preço era justo?
Paulinho — Quando a cervejaria me convidou, tive o cuidado de consultar pessoas ligadas ao meio publicitário para calcular o valor do cachê. É claro que a cervejaria tinha todo o direito de recusar o que pedi, mas o episódio acabou de maneira muito desagradável, porque fiquei sabendo que eles não haviam aceito o cachê pelas colunas dos jornais, em notas irônicas.

Veja — Você ouve rock?
Paulinho — Ouço, sim, mas aquele feito pela nossa turma aqui no Brasil. Titãs, por exemplo. Acho muito legal o trabalho dos Paralamas. Lembro de um show do Lobão no Circo Voador. Fui levado por minha filha e acabei achando superinteressante. Não acho que o nosso rock é pura importação. Eles criaram uma coisa que é nossa, que faz parte de nós.

Veja — Como é a sua relação com os computadores? Já aderiu à Internet?
Paulinho — Eu ando em casa e vejo minha mulher, meus filhos, todos conversando pela Internet. Claro que eu reconheço a importância do computador, apenas não me atrai bater papo com alguém através de um teclado e uma tela. Gosto da mesa de bar, de tomar um café, de olhar para a pessoa. Só me preocupa quando esse pessoal quer trocar de equipamento a cada seis meses. Assim não vai dar, ninguém tem dinheiro para tanta tecnologia. Houve uma época em que os músicos aderiram ao teclado eletrônico. O problema é que toda hora tinham de trocar de instrumento, pois sempre aparecia um mais avançado. Acabaram desistindo e voltando ao velho piano. No passado, eu até usei sintetizador para gravar um samba da Velha Guarda da Portela. Mas não sou muito fanático por essas coisas. Ao contrário. Às vezes eu me sinto resistindo.

Veja — Como é ter seu pai no conjunto que o acompanha?
Paulinho — É ótimo. Ele consegue a proeza de ser um sujeito ainda mais tranqüilo do que eu. Com ele aprendi a gostar de música. Chegava em casa, no fim do dia, e ficava tocando violão sozinho, só ele ouvindo.

VEJA, 21/05/1997. 

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