Seis décadas de samba sincopado
Neste dia 2 de junho de 2014, o sambista Germano Mathias
completa 80 anos. Mas ninguém diz. Camisa estampada, sapado “couro de
chupa-cabra” e chapéu de aba estreita, ele continua o mesmo garoto serelepe do
samba sincopado
apelidado de Catedrático do Samba. Filho de pai carioca e mãe paulista,
Germano nasceu no bairro do Pari e se iniciou no samba nas rodas de engraxates
do centro velho da cidade. Quando o movimento começava a cair, eles batucavam na
caixa e levavam o samba, que atraía os tradicionais frequentadores da região:
marreteiros, entregadores e biscateiros.
Fã do samba carioca, que ouvia no
rádio, frequentador das escolas de samba e cordões do Bixiga e da Barra Funda,
Germano foi contratado pela Rádio Tupi, em 1955, depois de se apresentar em um
programa de calouros da emissora (À Procura de Um Astro). O sucesso na
rádio o credenciou a figurar no filme O Preço da Vitória (1956), de
Oswaldo Sampaio, ao lado de Joel de Almeida, Inezita Barroso e outros atores e
cantores consagrados. Em 1956, lançou seu
primeiro disco, com a polêmica e politicamente incorretíssima Minha Nega na
Janela (parceria com Doca), em que cantava:
Minha nega na Janela
Diz que está tirando linha
Êta nega tu és
feia
Que parece macaquinha
Olhei pra ela e disse
Vai já pra
cozinha
Dei um murro nela
E joguei ela dentro da pia
Quem foi que
disse
Que essa nega não cabia?
Hoje, seria preso e enquadrado em vários artigos de variadas leis. Embora não
seja filho de pai assustado, Germano prefere evitar problemas e não canta mais a
música nem que lhe paguem. O samba foi o carro-chefe de seu primeiro LP, lançado
em 1957, Germano Matias, o Sambista Diferente, cujo título revelava sua
forma irreverente de cantar o sincopado acompanhando-se de uma latinha de graxa
e imitando um trombone com a voz, o que lhe valeu no registro em carteira na
rádio Tupi a informação de que era cantor e tocador de “instrumentos exóticos”.
A latinha ele não toca mais, desde que se machucou em um acidente (Serelepe, o
septuagenário Germano achou um jeito de cair do palco durante um show do Projeto
Pixinguinha, em São Luís do Maranhão e teve de colocar três pinos no ombro). O
primeiro álbum lhe valeu o prêmio Roquete Pinto, o mais importante do rádio e TV
naquela época, e abriu-lhe o caminho para o segundo disco, Em Continência ao
Samba, com aquele que seria um de seus maiores sucessos, Guarde a Sandália Dela (em parceria com
Sereno). Germano também ficou marcado pela gravação de poderosos sambas de Zé
Kéti, como Nega Dina, Malvadeza Durão e Roberto Piva, como o
clássico Tem Que Ter Mulada.
Em 1959, lançou mais dois discos, Malvadeza Durão e Malandro de
Araque, e cantou no filme Quem Roubou Meu Samba?, uma comédia
musical no gênero das chanchadas, dirigido por José Carlos Burle e Hélio
Barroso, com participação de Ankito, Marlene e Angela Maria. Nos anos 60, foi
contratado da TV e da rádio Record, teve programa na TV Paulista (Nosso
ritmo é sucesso) e lançou novos álbuns (Ginga no Asfalto, 1962;
Samba de Branco, 1966; O Catedrático do Samba, 1967). Na
década seguinte, perdeu um pouco do espaço no cenário musical para o “sambão
jóia” e outros ritmos da moda. Mesmo assim gravou diversas marchinhas
carnavalescas em álbuns solo ou em “paus de sebo”, aqueles discos caça-níqueis
com diversos artistas dividindo as faixas. Mas continuou fiel às suas origens,
relançando velhos sucessos e novos sambas sincopados, em álbuns como Samba é
Comigo Mesmo (1971), Germano Mathias (1974), Antologia do
Samba-choro (1978) em que divide as faixas com Gilberto Gil. Germano sempre
foi o rei da caitituagem, a arte da divulgação sem jabaculê (divulgação paga).
Invadia redações e estúdios de rádio levando embaixo do braço seu último
lançamento e atormentava colunistas e programadores que, vencidos pelo cansaço
ou rendidos ao seu talento, não deixavam de lhe reservar um pouco do espaço cada
vez mais disputado pela indústria fonográfica.
Ouça Guarde a Sandália Dela: httpv://www.youtube.com/watch?v=87CYO_rfOhY
Depois de passar os anos 80 em relativo ostracismo, voltou a ser prestigiado
e vive hoje um instante de reconhecimento. “Eu me agarro a esses bons momentos
com unhas e dentes. Agora, com mais unhas do que dentes, porque esse aqui, ó, eu
perdi na semana passada”, brinca. No final dos anos 90 participou da antologia
História do Samba Paulista, do selo CPC-Umes. Depois de gravar os CDs
Talento de Bamba (2002) e Talento do Samba (2004), em 2005
lançou o disco Tributo a Caco Velho, em homenagem ao seu ídolo e modelo
de interpretação, de quem mantém um retrato na parede de seu apartamento da
CDHU, no bairro paulistano da Brasilândia. Foi com o sambista gaúcho que ele
aprendeu a cantar o samba “malandreado”. Em 2007, o pianista Guilherme Vergueiro
produziu seu DVD Ginga no Asfalto, com participação do trombonista Raul
de Souza.
Há dois anos, participou do projeto O Samba Pede Passagem, em que
relembrou os velhos sucessos do baiano Waldeck Artur de Macedo, o Gordurinha
(1922-1969), uma produção do compositor Eduardo Gudin com direção de Livia
Mannini. Hoje, Germano tem um show estruturado no embalo da Copa da África do
Sul, Futebol e Gafieira, no qual canta músicas relacionadas ao esporte
das multidões, como Bola de Meia, de Nerino Silva e Samba
Rubro-Negro, de Wilson Batista e Jorge Castro.
VEJA.COM 27/09/2010
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