Uma nota publicada na edição do dia 2 de junho de 2010 da VEJA, na seção
Radar, dizia: “Muito se falou do Rebolation, mas, entra ano, sai ano, a
febre do Carnaval são mesmo as marchinhas. Levantamento realizado pelo Ecad
mostra que, das vinte músicas mais tocadas em fevereiro nas casas de festas e
eventos de rua país afora, dezoito eram do gênero. As duas exceções são o frevo
Vassourinhas, na 14ª posição, e, aí sim, o intragável
Rebolation, em vigésimo. O pódio ficou para Mamãe Eu Quero,
Cabeleira do Zezé e Me Dá um Dinheiro Aí. Entre os compositores, os
cariocas João Roberto Kelly, Braguinha e Lamartine Babo foram os mais
tocados”. Autor de alguns dos maiores sucessos do Carnaval, Lamartine fez
escola, criou um estilo de música carnavalesca que durante décadas dominou as
ondas do rádio, o mercado fonográfico e os salões da folia. Foi parceiro de Noel
Rosa em músicas como A-B-Surdo, Menina dos Meus Olhos e A, E, I,
O, U (“A, E, I, O, U/ Dabliú, dabliú/Na cartilha da Juju, Juju”), de Assis
Valente, em Jeannette, e de Ary Barroso, em Grau Dez, Amor
de Mulato e na dolente No Rancho Fundo, gravada em 1931 por
Elizinha Coelho (uma das primeiras divas do rádio, mãe do jornalista Goulart de
Andrade) e regravada infinitas vezes, uma das mais recentes pela dupla
Chitãozinho e Chororó.
Chitãozinho e Chororó cantam No Rancho Fundo:
Outro parceiro constante de Lalá foi Braguinha, o João de Barro, com quem fez
sucessos como Cantores do Rádio e Eu Queria Ser Ioiô (gravada
por Carmen Miranda). Mário Reis gravou da dupla Uma Andorinha Não
Faz Verão, sucesso estrondoso no carnaval de 1934:
Vem moreninha
Vem tentação
Não andes assim tão sozinha
Que uma
andorinha não faz verão
Algumas de suas marchinhas venceram o tempo e ainda hoje são cantadas durante
os festejos de Momo. É o caso de Linda Morena (Linda morena, morena/ Morena
que me faz penar/ A lua cheia que tanto brilha/ Não brilha tanto quanto o teu
olhar) e O Teu Cabelo Não Nega.
Ouça O Teu Cabelo Não Nega:
Grau Dez é outro clássico do gênero: ”A vitória há de ser tua,
tua, tua/ Morenininha prosa/ Lá no céu a própria lua, lua, lua/ Não é mais
formosa/ Rainha da cabeça aos pés/ Morena eu te dou grau dez! As marchinhas
carnavalescas são cantadas ainda hoje, mas no passado elas não só tocavam no
rário e eram cantadas nos bailes como davam um bom dinheiro para seus autores,
provocando disputas acirradas.
Em 1934, Lamartine vencia um concurso de marchinhas quando outro craque do
gênero, o cartunista Nássara, teve sua marcha, Maria Rosa,
desclassificada sob acusação de plágio. Lamartine abiscoitou o primeiro lugar
com a marchinha Ride Palhaço, mas Nássara reagiu, provando que a
música do concorrente era um plágio da ópera Pagliacci, de Leoncavallo.
Desclassificado Lalá, Nássara venceu o concurso com nova marchinha, feita ali,
na hora. O auge se deu nos anos 60/70, quando o dinheiro começou a fluir
pesadamente nos cofres das sociedades arrecadadoras, que intensificaram a
fiscalização sobre salões de bailes e emissoras de rádio, engrossando os
proventos dos autores. Mas isso atraiu gente gulosa, como disse o maior
intérprete de marchinhas de todos os tempos, Joel de Almeida, que denunciou no
jornal Folha de S. Paulo, em 1970, o avanço dos “picaretas” que ameaçavam os
domínios dos autores: “Os autores não aguentam a competição desonesta de
ilustres desconhecidos que até pagam para que as orquestras toquem as suas
músicas em bailes de carnaval”. Joel, que em 1964 interpretou Lamartine na
revista de Carlos Machado Teu Cabelo não Nega, sucesso durante seis
meses no Golden Room do Copacabana Palace Hotel, indignava-se. Associada ao
jabaculê pago para que suas músicas tocassem nas rádios, esses bicões deixaram a
velha guarda das músicas carnavalescas para trás. Só não contavam que as
marchinhas antigas, como as de Lamartine, se imporiam imortalizadas na voz dos
foliões. Lamartine não fazia só marchinhas carnavalescas. Ele compôs outros
gêneros com grande competência e inspiração, como o fox Canção Pra Inglês
Ver, gravado por Joel e Gaúcho, e canções juninas, que ainda hoje animam as
noites frias de São João, como Chegou a Hora da Fogueira. É
ainda autor dos hinos alternativos dos times cariocas de futebol (ninguém canta
os hinos oficiais, só os seus) e torcedor fanático do América, para o qual
reservou a melodia mais bonita.
Ouça o hino do América?
Mas como lembra Daniel Banho, numa colaboração a este blog: “Lamartine era um
gênio, de fato, mas a melodia do hino do America é plágio. O que, acredito, não
diminui em nada seu brilhantismo e importância histórica para música
brasileira”.
A prova do que diz Daniel. Ouça:
Mais do que plágio, acho que Lamartine fez uma verdadeira versão da música,
com nova letra em ritmo de marcha-dobrado. Trata-se da canção Row Row Row, do
show da Broadway: “Ziegfield Follies Of 1912″, de James V. Monaco e William
Jerome, que teria sido feita como homenagem aos remadores americanos e adotada
depois pelos atletas da Universidade de Oxford, na Inglaterra. Vivendo e
aprendendo. No hino, por exemplo, os versos da canção original, ”And then
he’d row, row, row/ Way up the river he would row, row, row/ A hug he’d give
her/ Then he’d kiss her now and then/ She would tell him when/ They’d fool
around and fool around/ And then they’d kiss again“, viraram: “Hei de
torcer, torcer, torcer/ Hei de torcer até morrer, morrer, morrer/ Pois a torcida
americana é toda assim/ A começar por mim/ A cor do pavilhão é a cor do nosso
coração“. Uma versão pura de parte da música original. Daniel Banho envia
ainda reportagem de O Globo, de 2006, em que o ator Paulo Silvino afirma ser o
hino do Fluminense também um plágio. Que me perdoem os outros, mas são
justamente os dois mais bonitos, Flu e América. Na reportagem enviada por Banho,
ficamos sabendo que o jornalista Sérgio Cabral certa vez perguntou ao próprio
Lamartine se ele tinha mesmo copiado o hino do América, o de que Cabral mais
gostava, de uma canção famosa nos Estados Unidos. Lamartine, então, respondeu
com graça: “Mas o nome do clube não é América?”.
Foi fantasiado de diabo (mascote do clube), que ele comemorou o último
campeonato do time, em 1960. Em 1981 a escola de samba Imperatriz
Leopoldinense homenageou o compositor no enredo O Teu Cabelo Não Nega (Só dá
Lalá), de Arlindo Rodrigues, cujo samba, de autoria de Zé Catimba, Gibi e
Serjão, magistralmente puxado por Dominguinhos do Estácio, dizia:
Linda morena
Com serpentinas enrolando foliões
Dominós e
colombinas
Envolvendo corações
Quem dera
Que a vida fosse
assim
Sonhar, sorrir
Cantar, sambar
E nunca mais ter fim
Oswaldo Sargentelli, sobrinho de Lamartine, prestou-lhe uma homenagem em
1983, com o musical Olê, Olá, na boate Oba, Oba, no Rio, onde 20
mulatas escolhidas a dedo rebolavam e cantavam os antigos sucessos de seu tio
famoso, cujas marchinhas e sambas, tão célebres e respeitados, que chegaram a
ganhar arranjos de Radamés Gnattali, nunca deixarão de ser cantados, enquanto
houver Carnaval.
Lamartine: o rei das marchinhas
VEJA.COM 19/01/2011
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