segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

A VIDA COMO ELA É

Preconceito e misoginia na MPB

(Detalhe da tela Dança, de Heitor dos Prazeres)

Por Julio Cesar Cardoso de Barros

Muitas pessoas se chocam com os versos de Minha Nega na Janela, de Germano Mathias, em parceria com Doca, publicados no perfil do sambista paulistano. O próprio cantor recusa-se a cantá-los em seus shows. “É politicamente incorreta demais”, diz Germano. Um passeio pela MPB nos mostra que esse tipo de humor foi muito comum nos anos de ouro da música brasileira, que vai dos anos 30 aos anos 50. Quando esse samba foi lançado, nos anos 50, a MPB andava recheada de manifestações machistas e preconceituosas. Se cantasse aqueles versos hoje, Germano teria dores de cabeça infindáveis com ONGs, a Justiça e principalmente com as mulheres. Mas Germano é incapaz de fazer mal a uma formiga. Bom marido e bom pai, o rei do samba malandreado tem como marca registrada um sorriso largo e um coração de ouro.

É preciso levar em consideração que, apesar do preconceito que exala desse tipo de versos, os autores não tinham a intenção de agredir, mas de fazer graça. Achavam até que estavam sendo carinhosos, quando escreviam versos como os de Boneca de Piche , de Ary Barroso e Luiz Iglesias (1938).

Ele:
Da cor do azeviche
Da jaboticaba
Boneca de piche
És tu quem me acaba
Ela:
Nego tu veio quase num arranco
Cheio de dedo dentro dessas luva
Bem que o ditado diz: nego de branco

É sinar de chuva 

Betty Faria e Grande Otelo cantam Boneca de Piche:
Em Cabelo Danado, o compositor Casquinha, da Velha Guarda da Portela, vai pelo mesmo caminho:

Nega, vou te fazer um apelo
Quer ser dona do meu lar?
Cuide mais do teu cabelo (…)
Nega do cabelo duro
Do cabelo pixaim
Tenho visto cabelo danado
Mas também não é assim

O cabelo e a cor da pele são alvos também da emblemática marchinha O Teu Cabelo Não Nega (1932), de Lamartine Babo com os irmãos João Vitor e Artur Valença:

O teu cabelo não nega, mulata
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata
Mulata eu quero o tem amor

Como o preconceito de cor, a misoginia também é abundante na música popular. Nos versos de Na Subida do Morro (Moreira da Silva e Ribeiro Cunha, 1952), Moreira da Silva, o Morengueira, cantava sem pudor:

Na subida do morro me contaram
Que você bateu na minha nega
Isso não é direito
Bater numa mulher que não é sua
Deixando a nega quase nua
No meio da rua
A nega quase que virou presunto
Eu não gostei daquele assunto
Hoje venho resolvido
A lhe mandar para a cidade dos pés juntos

Moreira da Silva canta Na Subida do Morro:
No tempo em que as escolas de samba estavam apenas engatinhando e não havia ainda o samba-enredo, a Portela cantou um clássico da misoginia, de autoria de Ernani Alvarenga:

 Lá vem ela chorando
O que é que ela quer?
Pancada não é, já sei
Mulher da orgia
Quando começa a chorar
Quer dinheiro, dinheiro não há
Carinho eu tenho demais
Pra vender e pra dar
Pancada também não há de faltar

Emília, de Haroldo Lobo (em parceria com Wilson Batista, 1942), é o protótipo da mulher-objeto:

 Eu quero uma mulher
Que saiba lavar e cozinhar
Que de manhã cedo
Me acorde na hora de trabalhar
Só existe uma
E sem ela eu não vivo em paz
Emília, Emília, Emília
Eu não posso mais

Se a Amélia, de Ataulfo Alves e Mário Lago, achava bonito não ter o que comer e solidária passava fome ao lado do companheiro, a coitada que habita o barraco de Isso Não São Horas (Catoni, Chiquinho e Xangô da Mangueira), tem que sofrer calada:

A mulher para ser minha
Tem de ser namoradinha
Comer pão com banana em casa
E dizer pra vizinha
Que comeu galinha

A mulher cantada por Sarabanda, por seu turno, não passa fome por causa de homem, para desespero dele:

Eu mandei o meu pombo-correio
Levar um bilhete pra ela
Ao invés de mandar resposta
Botou meu pombo na panela

Padeirinho da Mangueira, um dos maiores compositores de samba, deu sua contribuição para as desavenças de forno e fogão em Nega Velha:

Nega velha
Se você quiser ser minha
Tem que entender de cozinha
Pra tomar conta do meu lar
Porque a outra
Só queria ver novela
Queimou a panela
E eu mandei ela andar


    Padeirinho: a nega tem de cozinhar

O compositor Velha, da Portela, manteve a tradição:

Não sei se é da natureza
Ou se é obra do destino
Que a mulher nasce sorrindo
Cresce fingindo
E morre mentindo
A mulher carinhosa é falsa
Seja feia ou seja bela
Leva o homem à perdição
E o bicho ainda morre
De amores por ela

 Hélio dos Santos, baluarte da escola de samba Império Serrano, feriu duro no partido alto Eu Não Quero Mais:

Minha nega é maneta
E além de maneta é cega de um olho
É cega de um olho, tem pouco cabelo
E
 no pouco cabelo carrega piolho
Eu já falei pra você
Joga essa mulher no lixo
Além de caolha e ter pouco cabelo
Ela toma cachaça e joga no bicho

E a misoginia, que atravessou toda a era de ouro da música popular brasileira, chegou aos nossos dias no humor de gosto duvidoso do partideiro Almir Guineto (em parceria com Gelcy do Cavaco), na esculhambante Boca Sem Dente:

Aquela boca sem dente que eu beijava
Já está de dentadura
Aquela roupa velha que você usava
Hoje é pano de chão
Mandei reformar o barraco
Comprei geladeira e televisão
E você me paga com ingratidão

Vítima muda do preconceito, o feio passa quase sem defesa. Na polêmica que estabeleceu com Noel Rosa, o compositor Wilson Batista não perdoou, expondo publicamente os problemas físicos do poeta no samba Frankenstein da Vila  (1935):

Boa impressão nunca se tem
Quando se encontra um certo alguém
Q
ue até parece um Frankenstein

Ouça o Frankenstein da Vila:
 httpv://www.youtube.com/watch?v=ILdOUpEg5u0

    Noel: fealdade zombada

O feio é também tema de um clássico do samba de breque, gravado por Moreira da Silva e Jorge Veiga, dois mestres do gênero. Vale a pena mostrar a letra, para ver como sofre um pobre infeliz:

 Doutor, desde que nasci vivo adoentado
Tenho um nariz um tanto avantajado
A minha cara é feia pra chuchu
O meu queixo até parece uma castanha de caju
Nerusca de I love you
A minha boca é rasgada demais
E sendo assim, eu sou muito infeliz
Doutor, veja por quanto faz
Uma intervenção, no meu nariz (…)
Mas o doutor olhou pra mim
Deu um sorriso e disse assim
Você precisa é de tomar juízo, vai por mim
Você é forte e tem boa saúde
Até parece um astro lá de Hollywood
Acreditei no lero desse cientista de valor
Meti os peitos e fui fazer uma conquista de amor
Loco a primeira que eu chamei de flor
Me deu um peteleco e um contravapor
Eu vi anunciado um tal de Seu Macário
Que tem três filhas em estado precário
Meti os peitos fui correndo para lá
Pra conhecer Maricota, Mariquinha e Maricá
 (que têm a grana pra gastar)
Mas é que o seu Macário usou-me de franqueza:
"As minhas filhas não querem beleza
Mas você com esta cara que me traz
Eu tenho visto gente feia
Mas assim já é demais
Sai fora Satanás"

Em defesa do samba, é bom que se diga, houve escassos, mas contundentes críticos do preconceito. É o caso de Billy Blanco, em A Banca do Distinto, gravado por Isaurinha Garcia, em 1959:

Não fala com pobre
Não dá mão a preto
Não carrega embrulho
Pra que tanta pose, doutor?
Por que esse orgulho?
A bruxa, que é cega
Esbarra na gente e a vida estanca
O enfarte lhe pega, doutor
E acaba essa banca

Nossos compositores não eram especialmente incorretos, suas criações seguiam no ritmo da sociedade brasileira da época e não se diferenciavam em nada do humor impresso, do cinema e do teatro de revista que se fazia então. Os versos que hoje encabulam Germano são história. Ele pode não cantá-los mais, mas não precisa se envergonhar de te-los feito um dia.

VEJA.COM 27/09/2010

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