Por Julio Cesar Cardoso de Barros
Adoniram Barbosa nasceu no dia 6 de agosto de 1910*. Raro exemplo de
unanimidade nacional, ele foi um compositor de sambas paulista respeitado até no
reduto maior desse gênero musical: o Rio de Janeiro. Em 1969, durante o 3º Simpósio Nacional do Samba, no Rio, a delegação de São
Paulo chegou tímida. Não era para menos, estavam lá todas as feras do samba
carioca. A coisa mudou depois que alguém puxou o Trem das Onze, de
Adoniran, e o público todo cantou com vontade. Vai contra o espírito carioca
negar valor a quem o tem, na área musical e esportiva, notadamente. Da mesma
forma que encheu o Maracanã para aplaudir o Santos de Pelé, que fez do Rio sua
casa para jogos internacionais nos anos 60, os sambistas cariocas demonstraram
pela segunda vez sua admiração pelo talento do paulista de Valinhos. A primeira
havia sido a escolha desse samba no concurso de músicas carnavalescas realizado
em 1964, para o Carnaval do 4º Centenário da cidade do Rio de Janeiro, no ano
seguinte. Esse namoro se consolidou em 1999, quando o Centro Cultural Banco do
Brasil foi palco de uma grande homenagem ao compositor, com a presença da nata
da nova MPB.
Os Demônios da Garoa cantam Saudosa
Maloca:
De lá para cá, quando se fala em Adoniran, se fala em “samba paulista”.
Trata-se de uma confusão. Adoniran é único, não representa um tipo de samba
regional. Não se faz samba no estilo de Adoniran, na cidade ou no Estado de São
Paulo. O Adoniran compositor foi um personagem que João Rubinato, seu verdadeiro
nome, criou. O nome artístico ele tirou da cartola, unindo o nome do amigo
Adoniran Alves com o sobrenome do compositor e cantor Luís Barbosa (1910/1938),
que cantava sambas de breque batucando no chapéu de palha. Adoniran Barbosa era
um filho de italianos que aprendeu a gostar de samba nas batucadas do Bixiga e
nas ondas do rádio, onde brilhavam os sambas cariocas. Se alguma influência ele
teve, foram essas. Mas seu samba é específico, muito próprio. Não se enquadra no
batuque de origem rural dos paulistas nem no samba filho de baiana dos cariocas.
Trem das Onze, com o próprio
Adoniran:
Não que não tenham tentado, mas ninguém faz samba como Adoniram, pois
soaria ridículo. Adoniran era quase que o Juó Bananère da música. Bananère foi
um autor fictício, criado por Alexandre Marcondes Machado, que escrevia numa
linguagem na qual misturava de forma bem peculiar o italiano com o português. Um
imigrante da primeira metade do século XX, que narrava o cotidiano da cidade, a
vida dura dos italianos na nova terra. Adoniran fazia algo parecido, com menos
sotaque e os mesmos erros de concordância, usando um linguajar dos paulistanos
descendentes de italianos que ocupavam os cortiços dos bairros centrais da
cidade. Suas músicas eram, sobretudo, inspiradas nos tipos populares criados
pelo radialista Osvaldo Moles (1913-1982), um compositor e autor a quem conheceu
nos anos 40, mestre do humor radiofônico. Moles escreveu no rádio, entre os anos
40 e 60, os programas Casa da Sogra e Histórias das
Malocas. Nos textos de Moles, Adoniran interpretava personagens
caricatos, como o galã francês Jean Rubinet, o malandro Zé Cunversa, o judeu
Moisés, o italiano Giusseppe Pernafina e Charutinho, compositor que convivia num
cortiço com a Pafunça, o Panela de Pressão, a Terezoca e outros tipos.
Charutinho fazia sambas mal ajambrados, mas que acabaram virando coisa séria,
por conta do sucesso que alcançaram junto ao público, na vida real. Alguns
desses sambas foram feitos em parceria com o próprio Moles, como acontece com
Pafunça, O Casamento do Moacyr, Conselho de Mulher e Tiro
ao Álvaro. Pode-se dizer que Adoniran, o compositor de sambas engraçados,
foi uma co-criação de Moles.
Adoniran canta As Mariposas:
Quem conversasse com Adoniran perceberia que por trás daquele paulistano
pé-rapado estava um homem de certa cultura, conhecedor de livros e de música
mais refinada. Era o João Rubinado. Sua origem humilde, no entanto, não era
ficção. Filho de imigrantes italianos, João Rubinato entregou marmita, foi
office-boy, carregador, faxineiro, encanador, pintor de paredes, garçom,
caixeiro em loja de tecidos e ainda arrumou um hobby, fabricando até o fim da
vida brinquedos artesanais que alegravam a criançada. Mas desde cedo acalentou a
idéia de ser artista. Adorava o samba dos grandes compositores que ouvia no
rádio. Em 1934 venceu um concurso de música de Carnaval realizado pela
prefeitura de São Paulo com a marcha Dona Boa, dando a largada para uma
carreira que duraria meio século. Já como Adoniran Barbosa, foi disc-jóquei na
rádio Cruzeiro do Sul, em 1940, e no ano seguinte ingressou na rádio Record,
tocando discos, mas iniciando-se naquela que seria sua verdadeira vocação:
humorista. É no humor que sua música se firmou.
Torresmo à Milanesa, com Clementina de
Jesus e Carlinhos Vergueiro:
Em 1950, o regional Demônios da Garoa surgiu em sua vida como a mais perfeita
parceria possível a um compositor popular. O grupo incorporou a cena e acumulou
sucessos cantando no paulistanês criado por Moles e Adoniran. Nos anos de 1951 e
52, com os sambas Malvina e Joga a Chave (c/ Osvaldo França),
já interpretado pelos Demônios, Adoniran voltou a vencer o concurso de músicas
carnavalescas da prefeitura. Mas sua vida deu uma guinada mesmo em 1955, quando
Saudosa Maloca, que ele gravara com pouca repercussão em 1951, estourou
nas paradas na voz dos Demônios da Garoa. O megassucesso trouxe de cambulhada o
Samba do Arnesto, outro clássico adoniraniano. Saudosa Maloca
conquistaria o Rio de Janeiro, terra do samba, na voz de Marlene. Foi aberta a
porteira por onde passariam Apaga o Fogo Mané, As Mariposas,
Iracema, Mulher Patrão e Cachaça, No Morro da Casa Verde, Trem das
Onze e dezenas de outras, feitas por ele ou em parcerias, que incluem até
Vinícius de Moraes. Esta última, uma confirmação da sofisticação insuspeitada de
Adoniran, que colocou uma música sublime na letra de Bom Dia, Tristeza,
poesia de Vinícius que lhe chegou às mãos por intermédio de Aracy de
Almeida.
Com Clara Nunes: Abrigo de
Vagabundo:
Em 1968 ele participou da I Bienal do Samba, com Mulher, Patrão e
Cachaça, sem sucesso. Mas sua marcha-rancho Vila Esperança,
apresentada em 1969, no I Festival de Músicas de Carnaval da TV Tupi,
classificou-se em segundo lugar, e ficou gravada no rol das grandes músicas de
carnaval. Com todo esse sucesso, ele só foi gravar cantando em 1974. Até o final
dos anos 60 não era costume compositor gravar, a não ser que fosse muito bom
cantor. Com a quebra do tabu, entre outros por obra de Chico Buarque de Holanda,
passou a ser essencial registrar essas vozes. Foi quando Cartola, Nelson
Cavaquinho e outros baluartes do samba tradicional começaram a entrar em
estúdio. O primeiro LP foi seguido de um segundo, em 1975, registrando para a
posteridade sua voz de taquara rachada. Adoniram morreu em 1982, aos 72 anos, de
parada cardíaca. Dois anos antes, por ocasião de seu 70º aniversário, a EMI
lançara um LP com suas músicas cantadas por ele e intérpretes como Elis Regina,
Roberto Ribeiro, Djavan, Clara Nunes, Clementina de Jesus e Carlinhos
Vergueiro.
Elis Regina canta Iracema com
Adoniran:
Elis Regina: sucesso com Tiro ao Álvaro
Adoniram emprestou seu caráter ao cinema nacional com grande assiduidade.
Fazendo o personagem caricato ou não, ele esteve em pelo menos 15 filmes:
Pif-paf (1945), Caídos do céu (1946), O cangaceiro
e Esquina da Ilusão (1953), Mulher de Verdade e
Candinho (1954), A Carrocinha, Carnaval em Lá Maior e
Três Garimpeiros (1955), A Pensão de Dona Estela, e A
Estrada (1956), Os Três Cangaceiros (1959), Bruma Seca
(1960), A Super Fêmea (1973) e Elas São do Baralho (1977).
Participou ainda de uma dezena de programas televisivos, entre seriados e
novelas: Quatro Homens Juntos (1965), Mãos ao Ar (1966),
Seu Único Pecado (1969), Tilim (1970), O Príncipe
e o Mendigo (1972), Mulheres de Areia (1973), Os
Inocentes (1974), Ovelha Negra (1975), Xeque-Mate (1976).
Além disso, fez os programas humorísticos Papai Sabe Nada e Ceará
Contra 007.
Adoniran e Mazzaropi no filme
Candinho:
No ano 2000, quando se comemorava o 90º aniversário de seu nascimento,
Adoniran foi homenageado no SESC Ipiranga, no espetáculo Boteco do Cabral,
apresentado pelo jornalista carioca Sérgio Cabral. O Conjunto Cultural da Caixa
apresentou, em São Paulo, a mostra Adoniran Barbosa - Uma Prova de
Carinho, reunindo objetos pessoais, vestuário, filmes e letras de músicas
do compositor. Em 2002, ao completar 20 anos de sua morte, o jornalista e músico
Ayrton Mugnaini Jr. publicou a biografia Adoniran, dá licença de
contar…. O jornalista e pesquisador Celso de Campos Jr. é responsável por
outra obra sobre a vida do artista: Adoniran, uma biografia. Ainda em
2002, Francisco Rocha publicou Adoniran Barbosa: o Poeta da Cidade.
Neste ano, o SESC promoveu um show com o lançamento de CD gravado em homenagem
aos 100 anos do compositor, reunindo as cantoras Maria Alcina, Cristina Buarque,
Virgínia Rosa, Verônica Ferriani, Patty Ascher e Márcia Castro. Além do sambista
Oswaldinho da Cuíca, seu amigo do Bixiga e do samba.
*Adoniran teria dito que na verdade nasceu em 1912, mas para trabalhar mais
cedo a família teria arrumado um “batistério” que o envelhecia dois anos. Mas
seu biógrafo Celso de Campos Jr. confirmou nos registros de Valinhos que a data
é mesmo 1910.
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