O poeta maior
Por Julio Cesar Cardoso de Barros
No dia 11 de dezembro de 2010 comemoramos o centenário de nascimento de Noel Rosa, um
dos mais prolíficos compositores brasileiros, nome maior do samba, autor de
músicas que nunca saem de pauta e resistem geração após geração, sendo gravadas
e regravadas infinitamente, como Gago Apaixonado, Com Que Roupa?, Três
Apitos, Feitio de Oração, Feitiço da Vila, Conversa de Botequim, Palpite
Infeliz, Último Desejo, Pastorinhas, Positivismo, Pierrô Apaixonado entre
as cerca de 250 canções que compôs em sua curta existência de 26 anos. Noel foi
boêmio, mulherengo e abusava do álcool. A vida desregrada afetou tanto sua saúde
quanto sua situação financeira, o que o obrigou certa vez a empenhar o próprio
instrumento de trabalho, seu violão, para levantar dinheiro. Quase nada se sabe
da infância de Noel Rosa. Um pouco dessa infância é descrito no livro Noel, O
Menino da Vila, lançado em 2010, que reúne ficção e realidade, escrito
a quatro mãos pelos irmãos Clóvis e Márcia Bulcão, com capa e ilustrações da
artista plástica curitibana Iara Teixeira:
“Como muitos meninos, Noel cresceu saboreando todas as delícias de Vila
Isabel. Era livre para brincar na rua, empinar pipa, jogar botão, pegar o bonde
andando e, em junho, sempre soltava balão. Adorava subir na Pedreira do Simões e
lá do alto gritar para o mundo:
– Ale-lê-oooo.
Apesar de ser o menor e o mais magro da turma, Noel sempre liderava os
amigos na hora das brincadeiras. Corria de vento em popa, pulando como sapo,
escapando até de praga de urubu. E quando implicavam com seu tipo físico
mirradinho, rebatia achando graça:
– Quem foi que disse que eu era forte? Nunca pratiquei esporte.
Mas não era só por ser magrinho que o provocavam. Como tinha o queixo
muito pra dentro, acabou ficando conhecido na Vila por Queixinho.”
Dá para imaginar as peripécias do garoto num Rio de Janeiro de confeitarias
elegantes e morros já apinhados de gente pobre, que perambulava pelas ruas como
pregoeiros, carregadores, estivadores e outros expedientes, na luta pela
sobrevivência. Um Rio de sambas e batucadas, de chorinho e serenatas. O que se
sabe é que Noel nasceu na Vila Isabel e lá viveu na mesma casa da Rua Teodoro da
Silva, por 26 anos. Era filho de uma professora com um comerciário, e tinha um
irmão, Hélio, quatro anos mais novo que ele. O pai se suicidaria mais tarde,
durante internação num sanatório para doenças mentais. A mãe, que lecionava em
casa, ensinou-lhe as primeiras letras. Ele completou os estudos básicos nos
Colégios Maisonnete e São Bento, onde estudou até os 18 anos. Cursou a faculdade
de Medicina até o terceiro ano. Da arte de Hipócrates, restou como herança o
samba Coração, no qual diz: Coração/Grande órgão
propulsor/Transformador do sangue/Venoso em arterial. Já era compositor
respeitado, e decidiu-se pela carreira artística, num mercado que apenas
engatinhava. Aos 23 anos casou-se com Lindaura, de 13, a quem engravidara. Ela
perdeu o bebê e ele não deixou herdeiros.
O violão: companheiro de
orgia
Aos 24 anos, a vida promíscua que levava, entre a
zona boêmia e a zona do meretrício havia minado sua saúde. Com os dois pulmões
afetados pela tuberculose, internou-se para tratamento em Belo Horizonte,
primeiro, e depois em Nova Friburgo, na região serrana do Estado do Rio e em
Barra do Piraí, no Vale do Paraíba. Apesar da doença e das internações, ele
nunca abandonou a noite, apresentando-se como cantor tanto na capital mineira
quanto na serra fluminense, e frequentando os bares das cidades. Seguiram-se
outras internações, mas os hábitos de vida do poeta o haviam condenado. Ricardo
Cravo Albin descreveu assim, sua morte, ocorrida em 1937, quando contava
escassos 26 anos: “Morreu na noite do dia 4 de maio, enquanto em frente à sua
casa comemoravam o aniversário de uma vizinha numa festa em que tocavam suas
músicas. Diversas versões sobre sua morte foram publicadas em diferentes jornais
e biografias, onde se fez referência até a um ataque cardíaco. Ao seu enterro
compareceram muitas personalidades da música e do rádio. À beira de seu túmulo,
Ary Barroso fez um discurso emocionado, homenageando o amigo e parceiro”. Noel
viveu intensamente, bebeu demais, farreou, enveredou na orgia. Não foram poucas
as vezes em que subiu o morro e por lá permaneceu, cantando samba, ouvindo os
poetas do lugar e bebendo. É parte do folclore da MPB as carraspanas que tomou,
a ponto de ter sido cuidado por Deolinda, mulher de Cartola,
que chegava a lhe dar banho e colocá-lo na cama, como se se trata-se de um
filho. Na sua Vila, no Estácio de Ismael Silva ou no morro da Mangueira, de
Cartola, o samba era sempre acompanhado do álcool, em doses industriais.
Uma carreira curta e brilhante
Noel de Medeiros Rosa foi
um músico precoce, cujo talento saltou aos ouvidos de todos que o cercavam ainda
durante a infância. Aprendeu a tocar violão com o pai e amigos, bandolim
aprendeu por conta própria, e ainda criança fazia serenatas pelo bairro. Sua
paixão pela música popular, que era grande, aumentou depois que conheceu Sinhô,
o Rei do Samba, que tomou-se de amizade pelo garoto. Em 1929 Noel juntou-se a
Almirante, Braguinha, Alvinho e Henrique Brito para formar o Bando de Tangarás,
que se apresentava em festas e no rádio. Com o Bando gravou ritmos regionais,
que dominavam o incipiente mercado. Eram sons nordestinos e sertanejos, como a
embolada, a toada, o cateretê e o maxixe. No mesmo ano, começou a compor. É
dessa época a embolada Minha Viola: Minha viola/Tá chorando com
razão/ Com saudade da marvada/ Que roubou meu coração. No ano seguinte,
gravou Com Que Roupa, seu primeiro sucesso. Daí por diante as músicas
saíram de seu violão aos borbotões. Foi descoberto pelos grandes intérpretes da
época e gravado com sucesso ao longo de toda a sua curta vida restante. Suas
canções, de melodias belas e letras que falavam do cotidiano da gente do Rio
numa linguagem simples, direta, porém inspirada, eram requisitadas para o teatro
de revista, para os musicais de auditório nas emissoras de rádio – todas o
queriam na programação, chegou a ter emprego fixo no programa Casé, da Rádio
Phillips – e para shows em casas de espetáculos. Seu talento para arrancar o
riso em letras que narravam as vicissitudes da vida e as armadilhas do cotidiano
encantava o público, a crônica e os pares.
Com Francisco Alves, Carmen Miranda e
Almirante no estúdio da Rádio Tupi
Mas o sucesso não deslubrou o jovem compositor,
assíduo freguês do famoso Café Nice, na Avenida Rio Branco, 174, esquina com
Bittencourt da Silva, no Centro, mas que não deixava de frequentar os cafés
simples de sua Vila, onde mantinha contato com os sambistas dos morros
da Zona Norte da cidade, com os quais descobriu um novo jeito de compor e
cantar o samba. Menos corta-jaca e mais sincopado. Desse contato surgiu o estilo
que consagrou Noel. Foi parceiro de gente do asfalto, como Custodio Mesquita
(Prazer em conhecê-lo), Orestes Barbosa (Positivismo), Nássara
(Retiro da Saudade), Lamartine Babo (A-B-Surdo e A, E, I,
O, U), João de Barro (Linda Pequena e Pastorinha), Hervé
Cordovil (Leite com Café e Triste Cuíca), Vadico (Feitiço
da Vila e Conversa de Botequim) e Ary Barroso (Estrela da
Manhã e Mão no Remo). De de gente do morro, como Ismael Silva
(Para Me Livrar do Mal), Wilson Batista (Deixa de Ser
Convencido), Cartola (Não Faz Amor), Antenor Gargalhada (Agora
Eu Fiquei Mal) e Heitor dos Prazeres (Pierrô Apaixonado), e da
velha guarda, como Donga (Não Há Castigo). E sozinho fez exeplares
inesquecíveis de nosso cancioneiro: Fita Amarela, Cinema Falado, Gago
Apaixonado, Onde Está a Honestidade, Palpite Infeliz, Rapaz Folgado, Último
Desejo e Três Apitos.
Noel canta Com Que Roupa:
Noel fez dezenas de parcerias com Francisco Alves,
o Rei da Voz. Mas é sabido que Chico Viola, como era também chamado, tinha
costume de comprar músicas e de gravar canções com a condição de ganhar sua
parceria. Assim, seu nome aparece em A Razão Dá-se a Quem Tem, Adeus, Assim,
Assim, Esquina da Vida e outras. Algumas fruto de parcerias reais, outras,
de sociedade duvidosa. Mas a importância de Chico Alves na carreira do
compositor é fundamental. Em 1932, ele gravou os sambas Ando Cismado e
Nuvem que Passou (com Ismael Silva) e convidou Noel para integrar seu
trio Bambas do Estácio. Com ele Noel excursionou, fez shows e emplacou sucessos
no rádio. Mário Reis foi outro de seus grandes intérpretes. Com sua voz comedida
e seu jeito cool, Reis gravou Fita Amarela e Vai Haver
Barulho no Chatô, em 1933. Outro grande intérprete de Noel foi Silvio
Caldas, que dele gravou Pra Que Mentir. Aracy de Almeida é apontada
como sua grande intérprete feminina, voz que consagrou Rapaz Folgado e
tantas outras. Mas Aracy parece ter-se firmado como uma intérprete roseana
depois da morte do poeta, que segundo Ricardo Cravo Albin considerava Marília
Barbosa, que lhe gravou Quem Dá Mais? e Coração, no seu disco
de estréia, em 1932, como a preferida do poeta. Seus sambas, marchas e
marchinhas fizeram sucesso também no Carnaval, em parcerias nobres com os reis
do gênero, como Braguinha (Linda Pequena e Pastorinhas), Lamartine
Babo (A, E, I, O, U) e em composições solo, como Até
Amanhã, grande sucesso no Carnaval de 1933.
A polêmica histórica
A briga em disco da Odeon: ilustração de Nássara
A polêmica com Wilson Batista marcou a carreira de Noel, mas a briga
funcionou como o que hoje seria considerado uma jogada de marketing. Tudo
começou em 1933, quando Noel respondeu com o samba Rapaz Folgado, na
voz de Aracy de Almeida, à apologia da malandragem feita por Wilson Batista em
Lenço no Pescoço, gravado por Silvio Caldas.
Wilson cantou:
Meu chapéu do lado
Tamanco arrastando
Lenço no
pescoço
Navalha no bolso
Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu
tenho orgulho
Em ser tão vadio
Noel replicou:
Deixa de arrastar o teu tamanco
Pois tamanco nunca
foi sandália
E tira do pescoço o lenço branco
Compra sapato e
gravata
Joga fora esta navalha que te atrapalha
Wilson treplicou:
Você que é mocinho da Vila
Fala muito em
violão
Barracão e outros fricotes mais
Se não quiser perder
Cuide do
seu microfone e deixe
Quem é malandro em paz
Injusto é seu
comentário
Falar de malandro quem é otário
Mas malandro não se faz
Eu
de lenço no pescoço desacato
E também tenho o meu cartaz
Noel não respondeu e a coisa poderia ter parado por aí, não fosse Batista
encafifar com o sucesso de Feitiço da Vila, parceria de Noel com
Vadico, que fazia uma apologia escancarada aos encantos da Vila Isabel e de seus
poetas:
Lá, em Vila Isabel
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba
São
Paulo dá café
Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba
Orlando Silva canta Feitiço da Vila:
Cheio de dor-de-cotovelo, Batista atacou com Conversa
Fiada:
É conversa fiada dizerem
Que o samba na Vila tem
feitiço
Eu fui ver para crer
E não vi nada disso
A Vila é
tranquila
Porém eu vos digo: cuidado!
Antes de irem dormir
Dêem duas
voltas no cadeado
O ataque à Vila pareceu a Noel um despropósito. Com trânsito em todos os
morros da Zona Norte e bairros da Cidade Nova, foi diplomático em Palpite
Infeliz, com Aracy de Almeida:
Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do Céu, que palpite
infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira
Oswaldo Cruz e Matriz
Que
sempre souberam muito bem
Que a Vila Não quer abafar ninguém
Só quer
mostrar que faz samba também
João Gilberto canta Palpite Infeliz (de
quebra, um passeio de bonde pelo velho Rio):
À diplomacia de Noel, Wilson Batista respondeu com grosseria inominável,
ressaltando o problema físico de Noel, cujo queixo trazia sequelas de um parto
feito a fórceps. E assim atacou, em Frankenstein da Vila:
Boa impressão nunca se tem
Quando se encontra um certo alguém
Que
até parece um Frankenstein
Mas como diz o rifão: por uma cara
feia
Perde-se um bom coração
Entre os feios és o primeiro da fila
Todos
reconhecem lá na Vila
Essa indireta é contigo
E depois não vá dizer
Que
eu não sei o que digo
Sou teu amigo
Ninguém se atreveu a gravar algo tão ofensivo, mas o samba correu de boca em
boca e foi cantado nas rádios. Não contente com o ataque cruel, Batista deu um
golpe de misericórdia em Terra de Cego, que ninguém gravou, também:
Perde a mania de bamba
Todos sabem qual é
O teu diploma no
samba
És o abafa da Vila, eu bem sei
Mas na terra de cego
Quem tem um
olho é rei
A polêmica não prosseguiu porque Noel deu-lhe um final civilizado. Botou nova
letra no samba de Batista, encerrando a polêmica. Terra de Cego ganhou
novo título, Deixa de Ser Convencido, e ficou assim:
Deixa de ser convencido
Todos sabem qual é
Teu velho modo de
vida
És um perfeito artista
Eu bem sei
E no picadeiro desta
vida
Serei o domador
serás a fera abatida
Noel sobe o morro
Convencionou-se que o primeiro samba
gravado no Brasil foi Pelo Telefone, de Mauro de Almeida e Donga
cantado por Baiano. É um marco, mas logicamente outras músicas do gênero já
existiam. Eram o resultado da influência do maxixe e do samba-de-roda que os
baianos trouxeram para o Rio e cantavam nas festas das tias da zona portuária da
Gamboa e da Saúde, num movimento que depois se espalhou pela Cidade Nova, com a
modernização do centro e a derrubada das moradias precárias onde viviam os
negros. Pelo Telefone era mais um maxixe que o samba como o conhecemos.
O samba moderno é uma evolução surgida nos morros da Mangueira e do Salgueiro e
nos bairros do Estácio e Vila Isabel, fruto da troca entre sambistas das favelas
e do “asfalto”. Compositores da cidade, que subiam o morro para batucadas
memoráveis e compositores do morro desciam para frequentar os cafés, que eram
pontos de encontro de artistas, criaram um novo modo de cantar o samba. Baiaco,
Brancura, Bide, Ismael Silva e muitos outros autores já almejavam, por essa
época, a profissionalização. O primeiro samba de Ismael Silva, gravado por
Francisco Alves em 1927 (Me Faz Carinho), é um marco do nascimento do
samba carioca, que resiste até hoje. Um exemplar esplêndido dessa safra de
sambas é Se Você Jurar. Noel se interessou pelo samba que era feito nos
morros que rodeavam sua Vila, pelo samba do Estácio de Ismael Silva, pelo samba
carioca por excelência, aquele que rompeu com o maxixe e que coube a ele dar
roupagem definitiva.
Noel canta Gago Apaixonado:
No livro O Morro e o asfalto no Rio de Janeiro
de Noel Rosa,
de João Máximo, lançado no início de 2010 pela editora Aprazível para comemorar
o centenário do artista
da Vila Isabel, é esclarecedor e ajuda a entender o samba
carioca. O livro traz 180 fotografias e um CD com 14 músicas interpretadas
pelo próprio Noel Rosa, Mário Reis e Aracy de Almeida. Diz Máximo: “Não há como
provar mas pode-se deduzir como e porque foi o samba do Estácio que Noel Rosa
abraçou. Sua Vila Isabel era cercada de morros. Macacos, Mangueira, Telégrafo,
Salgueiro, além de ser bairro de meio de caminho entre os subúrbios e o Centro.
Noel nunca andou pela Cidade Nova, a não ser pelas ruas do Mangue, naturalmente
com outros fins. Seus contatos com Pixinguinha e a turma da Pequena África só se
dariam quando eles passassem a se encontrar nos estúdios de gravação nos
aquários das rádios, nos palcos de teatro, todos já profissionais. Já com
Canuto, Pururuca, Antenor Gargalhada e, logo depois, Ismael Silva, Bide, Lauro
dos Santos, o Grandim, Ernani Silva, o Sete, Zé Pretinho, Manoel Ferreira e
Angenor de Oliveira, o Cartola — negros que viviam nos morros ou estavam
intimamente ligados às harmonias e ritmos do samba –, Noel Rosa não só conviveu,
como também, detalhe importante, fez-se parceiro de todos eles. Definidor porque
único e determinante. Único na medida em que nenhum outro branco, de classe
média, com passagem por universidade, entregou-se a colaborações inter-raciais
como o Noel dos três anos seguintes à sua saída do Bando de Tangarás.
Observe-se, no rastro daquelas colaborações, que é quase possível traçar o
roteiro — mapa da mina — dos morros cariocas visitados por ele em busca de
samba, Macacos, Ramos, Serrinha,Salgueiro, Mangueira, Favela, São Carlos,
redutos dos dez sambistas negros enumerados no parágrafo anterior. Determinante
se se tiver em conta que foi com base nessas parcerias, uns aprendendo com os
outros, pedras brutas sendo buriladas, que Noel vai demarcar o caminho musical
que seguirá até o fim: o do samba.”
Esse processo de rompimento com a forma maxixada de
cantar e tocar o samba não foi simples. E Noel teve papel importante nessa
guinada. É o próprio João Máximo quem explica: “O assunto é menos simples do que
parece. Complica-se entre outros motivos, porque, em quase todos os discos de
época – tanto os de Noel como os dos compositores de morro, com destaque para os
do Estácio –, os sambas tinham sotaque amaxixado, as orquestras que acompanhavam
cantores como Francisco Alves e Mário Reis entregues a baixarias típicas do
maxixe. Quer dizer, sambas autenticamente do Estácio tornados híbridos pelos
músicos e maestros que, até ali, só conheciam a música da Cidade Nova. O
importante é que duas passam a ser as principais contribuições de Noel Rosa à
afirmação do samba como a música do Rio: uma, sua já abordada ligação com os
sambistas de morro
( geralmente, com ele acrescentando segundas partes, música e letra, às
primeiras que os sambistas lhe mostravam); e a outra, a reinvenção da lírica da
música popular, tanto nos sambas em forma de crônica, sobre episódios e
personagens do cotidiano, como, muito especialmente, na canção romântica. Seria
a partir dali que, rompendo com os arroubos, preciosismos, pernosticismos mesmo
de letristas derramados do tipo Catulo da Paixão Cerarense e Cândido das Neves,
o Índio, Noel Rosa reafirmaria com brilho que qualquer tema pode ser cantado em
música popular. E com uma linguagem para ser entendida pelo povo, pelo homem
comum. O humor, a crítica, a ironia, a mentira, a vilania, a injustiça, a
desonestidade, o dinheiro e a falta dele, os joões-ninguém e as marias-fumaças
da cidade, tudo cabia em tudo inclusive no amor, e não apenas, como se
acreditava até então, na liberada cantiga carnavalesca”.
Noel subiu a ladeira para beber a água da bica do samba do morro. Quando
desceu, não era mais o cantor do grupo Bando de Tangarás, com suas ingênuas
canções regionais, chapéu de palha e lencinho no pescoço. Era um compositor que
se tornaria um dos melhores que este país conheceu. Justa a homenagem que o
erudito Radamés Gnatalli, autor de arranjos magistrais para músicas populares,
lhe fez em 1972, ao compor o Concerto para Noel Rosa, para piano e
orquestra, em três movimentos: Allegro (Pastorinhas); Adagio (Em
Feitio de Oração); e Allegro Moderato (Conversa de Botequim),
gravado com Arthur Moreira Lima ao piano, doze violinos, quatro violas, quatro
violoncelos, dois contrabaixos, duas flautas, um flautim, dois oboés, corne
inglês, fagote, trompa, prato, caixa e tímpano. Fraque e cartola para o menino
da Vila.
Joel de Almeida e Gaúcho cantam Pierrô
Apaixonado:
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