sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

NOEL ROSA

O poeta maior


Por Julio Cesar Cardoso de Barros

No dia 11 de dezembro de 2010 comemoramos o centenário de nascimento de Noel Rosa, um dos mais prolíficos compositores brasileiros, nome maior do samba, autor de músicas que nunca saem de pauta e resistem geração após geração, sendo gravadas e regravadas infinitamente, como Gago Apaixonado, Com Que Roupa?, Três Apitos, Feitio de Oração, Feitiço da Vila, Conversa de Botequim, Palpite Infeliz, Último Desejo, Pastorinhas, Positivismo, Pierrô Apaixonado entre as cerca de 250 canções que compôs em sua curta existência de 26 anos. Noel foi boêmio, mulherengo e abusava do álcool. A vida desregrada afetou tanto sua saúde quanto sua situação financeira, o que o obrigou certa vez a empenhar o próprio instrumento de trabalho, seu violão, para levantar dinheiro. Quase nada se sabe da infância de Noel Rosa. Um pouco dessa infância é descrito no livro Noel, O Menino da Vila, lançado em 2010, que reúne ficção e realidade, escrito a quatro mãos pelos irmãos Clóvis e Márcia Bulcão, com capa e ilustrações da artista plástica curitibana Iara Teixeira:

“Como muitos meninos, Noel cresceu saboreando todas as delícias de Vila Isabel. Era livre para brincar na rua, empinar pipa, jogar botão, pegar o bonde andando e, em junho, sempre soltava balão. Adorava subir na Pedreira do Simões e lá do alto gritar para o mundo: 
– Ale-lê-oooo. 
Apesar de ser o menor e o mais magro da turma, Noel sempre liderava os amigos na hora das brincadeiras. Corria de vento em popa, pulando como sapo, escapando até de praga de urubu. E quando implicavam com seu tipo físico mirradinho, rebatia achando graça: 
– Quem foi que disse que eu era forte? Nunca pratiquei esporte. 
Mas não era só por ser magrinho que o provocavam. Como tinha o queixo muito pra dentro, acabou ficando conhecido na Vila por Queixinho.”  


Dá para imaginar as peripécias do garoto num Rio de Janeiro de confeitarias elegantes e morros já apinhados de gente pobre, que perambulava pelas ruas como pregoeiros, carregadores, estivadores e outros expedientes, na luta pela sobrevivência. Um Rio de sambas e batucadas, de chorinho e serenatas. O que se sabe é que Noel nasceu na Vila Isabel e lá viveu na mesma casa da Rua Teodoro da Silva, por 26 anos. Era filho de uma professora com um comerciário, e tinha um irmão, Hélio, quatro anos mais novo que ele. O pai se suicidaria mais tarde, durante internação num sanatório para doenças mentais. A mãe, que lecionava em casa, ensinou-lhe as primeiras letras. Ele completou os estudos básicos nos Colégios Maisonnete e São Bento, onde estudou até os 18 anos. Cursou a faculdade de Medicina até o terceiro ano. Da arte de Hipócrates, restou como herança o samba Coração, no qual diz: Coração/Grande órgão propulsor/Transformador do sangue/Venoso em arterial. Já era compositor respeitado, e decidiu-se pela carreira artística, num mercado que apenas engatinhava. Aos 23 anos casou-se com Lindaura, de 13, a quem engravidara. Ela perdeu o bebê e ele não deixou herdeiros.


    O violão: companheiro de orgia

Aos 24 anos, a vida promíscua que levava, entre a zona boêmia e a zona do meretrício havia minado sua saúde. Com os dois pulmões afetados pela tuberculose, internou-se para tratamento em Belo Horizonte, primeiro, e depois em Nova Friburgo, na região serrana do Estado do Rio e em Barra do Piraí, no Vale do Paraíba. Apesar da doença e das internações, ele nunca abandonou a noite, apresentando-se como cantor tanto na capital mineira quanto na serra fluminense, e frequentando os bares das cidades. Seguiram-se outras internações, mas os hábitos de vida do poeta o haviam condenado. Ricardo Cravo Albin descreveu assim, sua morte, ocorrida em 1937, quando contava escassos 26 anos: “Morreu na noite do dia 4 de maio, enquanto em frente à sua casa comemoravam o aniversário de uma vizinha numa festa em que tocavam suas músicas. Diversas versões sobre sua morte foram publicadas em diferentes jornais e biografias, onde se fez referência até a um ataque cardíaco. Ao seu enterro compareceram muitas personalidades da música e do rádio. À beira de seu túmulo, Ary Barroso fez um discurso emocionado, homenageando o amigo e parceiro”. Noel viveu intensamente, bebeu demais, farreou, enveredou na orgia. Não foram poucas as vezes em que subiu o morro e por lá permaneceu, cantando samba, ouvindo os poetas do lugar e bebendo. É parte do folclore da MPB as carraspanas que tomou, a ponto de ter sido cuidado por Deolinda, mulher de Cartola, que chegava a lhe dar banho e colocá-lo na cama, como se se trata-se de um filho. Na sua Vila, no Estácio de Ismael Silva ou no morro da Mangueira, de Cartola, o samba era sempre acompanhado do álcool, em doses industriais. 

    Lindaura chora no túmulo do marido
   
Uma carreira curta e brilhante
Noel de Medeiros Rosa foi um músico precoce, cujo talento saltou aos ouvidos de todos que o cercavam ainda durante a infância. Aprendeu a tocar violão com o pai e amigos, bandolim aprendeu por conta própria, e ainda criança fazia serenatas pelo bairro. Sua paixão pela música popular, que era grande, aumentou depois que conheceu Sinhô, o Rei do Samba, que tomou-se de amizade pelo garoto. Em 1929 Noel juntou-se a Almirante, Braguinha, Alvinho e Henrique Brito para formar o Bando de Tangarás, que se apresentava em festas e no rádio. Com o Bando gravou ritmos regionais, que dominavam o incipiente mercado. Eram sons nordestinos e sertanejos, como a embolada, a toada, o cateretê e o maxixe. No mesmo ano, começou a compor. É dessa época a embolada Minha Viola: Minha viola/Tá chorando com razão/ Com saudade da marvada/ Que roubou meu coração. No ano seguinte, gravou Com Que Roupa, seu primeiro sucesso. Daí por diante as músicas saíram de seu violão aos borbotões. Foi descoberto pelos grandes intérpretes da época e gravado com sucesso ao longo de toda a sua curta vida restante. Suas canções, de melodias belas e letras que falavam do cotidiano da gente do Rio numa linguagem simples, direta, porém inspirada, eram requisitadas para o teatro de revista, para os musicais de auditório nas emissoras de rádio – todas o queriam na programação, chegou a ter emprego fixo no programa Casé, da Rádio Phillips – e para shows em casas de espetáculos. Seu talento para arrancar o riso em letras que narravam as vicissitudes da vida e as armadilhas do cotidiano encantava o público, a crônica e os pares.

    Com Francisco Alves, Carmen Miranda e Almirante no estúdio da Rádio Tupi

Mas o sucesso não deslubrou o jovem compositor, assíduo freguês do famoso Café Nice, na Avenida Rio Branco, 174, esquina com Bittencourt da Silva, no Centro, mas que não deixava de frequentar os cafés simples de sua Vila, onde mantinha contato com os sambistas dos morros da Zona Norte da cidade, com os quais descobriu um novo jeito de compor e cantar o samba. Menos corta-jaca e mais sincopado. Desse contato surgiu o estilo que consagrou Noel. Foi parceiro de gente do asfalto, como Custodio Mesquita (Prazer em conhecê-lo), Orestes Barbosa (Positivismo), Nássara (Retiro da Saudade), Lamartine Babo (A-B-Surdo e A, E, I, O, U), João de Barro (Linda Pequena e Pastorinha), Hervé Cordovil (Leite com Café e Triste Cuíca), Vadico (Feitiço da Vila e Conversa de Botequim) e Ary Barroso (Estrela da Manhã e Mão no Remo). De de gente do morro, como Ismael Silva (Para Me Livrar do Mal), Wilson Batista (Deixa de Ser Convencido), Cartola (Não Faz Amor), Antenor Gargalhada (Agora Eu Fiquei Mal) e Heitor dos Prazeres (Pierrô Apaixonado), e da velha guarda, como Donga (Não Há Castigo). E sozinho fez exeplares inesquecíveis de nosso cancioneiro: Fita Amarela, Cinema Falado, Gago Apaixonado, Onde Está a Honestidade, Palpite Infeliz, Rapaz Folgado, Último Desejo e Três Apitos.


Noel fez dezenas de parcerias com Francisco Alves, o Rei da Voz. Mas é sabido que Chico Viola, como era também chamado, tinha costume de comprar músicas e de gravar canções com a condição de ganhar sua parceria. Assim, seu nome aparece em A Razão Dá-se a Quem Tem, Adeus, Assim, Assim, Esquina da Vida e outras. Algumas fruto de parcerias reais, outras, de sociedade duvidosa. Mas a importância de Chico Alves na carreira do compositor é fundamental. Em 1932, ele gravou os sambas Ando Cismado e Nuvem que Passou (com Ismael Silva) e convidou Noel para integrar seu trio Bambas do Estácio. Com ele Noel excursionou, fez shows e emplacou sucessos no rádio. Mário Reis foi outro de seus grandes intérpretes. Com sua voz comedida e seu jeito cool, Reis gravou Fita Amarela e Vai Haver Barulho no Chatô, em 1933. Outro grande intérprete de Noel foi Silvio Caldas, que dele gravou Pra Que Mentir. Aracy de Almeida é apontada como sua grande intérprete feminina, voz que consagrou Rapaz Folgado e tantas outras. Mas Aracy parece ter-se firmado como uma intérprete roseana depois da morte do poeta, que segundo Ricardo Cravo Albin considerava Marília Barbosa, que lhe gravou Quem Dá Mais? e Coração, no seu disco de estréia, em 1932, como a preferida do poeta. Seus sambas, marchas e marchinhas fizeram sucesso também no Carnaval, em parcerias nobres com os reis do gênero, como Braguinha (Linda Pequena e Pastorinhas), Lamartine Babo (A, E, I, O, U) e em composições solo, como Até Amanhã, grande sucesso no Carnaval de 1933.

    A polêmica histórica
    A briga em disco da Odeon: ilustração de Nássara

A polêmica com Wilson Batista marcou a carreira de Noel, mas a briga funcionou como o que hoje seria considerado uma jogada de marketing. Tudo começou em 1933, quando Noel respondeu com o samba Rapaz Folgado, na voz de Aracy de Almeida, à apologia da malandragem feita por Wilson Batista em Lenço no Pescoço, gravado por Silvio Caldas.

Wilson cantou:

Meu chapéu do lado

Tamanco arrastando

Lenço no pescoço

Navalha no bolso

Eu passo gingando

Provoco e desafio

Eu tenho orgulho

Em ser tão vadio



Noel replicou:


Deixa de arrastar o teu tamanco

Pois tamanco nunca foi sandália

E tira do pescoço o lenço branco

Compra sapato e gravata

Joga fora esta navalha que te atrapalha



Rose Maia canta Rapaz Folgado:


Wilson treplicou:

Você que é mocinho da Vila

Fala muito em violão

Barracão e outros fricotes mais

Se não quiser perder

Cuide do seu microfone e deixe

Quem é malandro em paz

Injusto é seu comentário

Falar de malandro quem é otário

Mas malandro não se faz

Eu de lenço no pescoço desacato
E também tenho o meu cartaz



Noel não respondeu e a coisa poderia ter parado por aí, não fosse Batista encafifar com o sucesso de Feitiço da Vila, parceria de Noel com Vadico, que fazia uma apologia escancarada aos encantos da Vila Isabel e de seus poetas:


Lá, em Vila Isabel

Quem é bacharel

Não tem medo de bamba

São Paulo dá café

Minas dá leite

E a Vila Isabel dá samba


Orlando Silva canta Feitiço da Vila:

Cheio de dor-de-cotovelo, Batista atacou com Conversa Fiada:


É conversa fiada dizerem

Que o samba na Vila tem feitiço

Eu fui ver para crer

E não vi nada disso

A Vila é tranquila

Porém eu vos digo: cuidado!

Antes de irem dormir

Dêem duas voltas no cadeado



O ataque à Vila pareceu a Noel um despropósito. Com trânsito em todos os morros da Zona Norte e bairros da Cidade Nova, foi diplomático em Palpite Infeliz, com Aracy de Almeida:



Quem é você que não sabe o que diz?

Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!

Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira

Oswaldo Cruz e Matriz

Que sempre souberam muito bem

Que a Vila Não quer abafar ninguém

Só quer mostrar que faz samba também


João Gilberto canta Palpite Infeliz (de quebra, um passeio de bonde pelo velho Rio):

À diplomacia de Noel, Wilson Batista respondeu com grosseria inominável, ressaltando o problema físico de Noel, cujo queixo trazia sequelas de um parto feito a fórceps. E assim atacou, em Frankenstein da Vila:

Boa impressão nunca se tem

Quando se encontra um certo alguém

Que até parece um Frankenstein

Mas como diz o rifão: por uma cara feia

Perde-se um bom coração

Entre os feios és o primeiro da fila

Todos reconhecem lá na Vila

Essa indireta é contigo

E depois não vá dizer

Que eu não sei o que digo
Sou teu amigo



Ninguém se atreveu a gravar algo tão ofensivo, mas o samba correu de boca em boca e foi cantado nas rádios. Não contente com o ataque cruel, Batista deu um golpe de misericórdia em Terra de Cego, que ninguém gravou, também:



Perde a mania de bamba

Todos sabem qual é

O teu diploma no samba

És o abafa da Vila, eu bem sei

Mas na terra de cego

Quem tem um olho é rei



A polêmica não prosseguiu porque Noel deu-lhe um final civilizado. Botou nova letra no samba de Batista, encerrando a polêmica. Terra de Cego ganhou novo título, Deixa de Ser Convencido, e ficou assim:



Deixa de ser convencido

Todos sabem qual é

Teu velho modo de vida

És um perfeito artista

Eu bem sei

E no picadeiro desta vida

Serei o domador

serás a fera abatida




Noel sobe o morro

Convencionou-se que o primeiro samba gravado no Brasil foi Pelo Telefone, de Mauro de Almeida e Donga cantado por Baiano. É um marco, mas logicamente outras músicas do gênero já existiam. Eram o resultado da influência do maxixe e do samba-de-roda que os baianos trouxeram para o Rio e cantavam nas festas das tias da zona portuária da Gamboa e da Saúde, num movimento que depois se espalhou pela Cidade Nova, com a modernização do centro e a derrubada das moradias precárias onde viviam os negros. Pelo Telefone era mais um maxixe que o samba como o conhecemos. O samba moderno é uma evolução surgida nos morros da Mangueira e do Salgueiro e nos bairros do Estácio e Vila Isabel, fruto da troca entre sambistas das favelas e do “asfalto”. Compositores da cidade, que subiam o morro para batucadas memoráveis e compositores do morro desciam para frequentar os cafés, que eram pontos de encontro de artistas, criaram um novo modo de cantar o samba. Baiaco, Brancura, Bide, Ismael Silva e muitos outros autores já almejavam, por essa época, a profissionalização. O primeiro samba de Ismael Silva, gravado por Francisco Alves em 1927 (Me Faz Carinho), é um marco do nascimento do samba carioca, que resiste até hoje. Um exemplar esplêndido dessa safra de sambas é Se Você Jurar. Noel se interessou pelo samba que era feito nos morros que rodeavam sua Vila, pelo samba do Estácio de Ismael Silva, pelo samba carioca por excelência, aquele que rompeu com o maxixe e que coube a ele dar roupagem definitiva.


No livro O Morro e o asfalto no Rio de Janeiro de Noel Rosa, de João Máximo, lançado no início de 2010 pela editora Aprazível para comemorar o centenário do artista da Vila Isabel, é esclarecedor e ajuda a entender o samba carioca. O livro traz 180 fotografias e um CD com 14 músicas interpretadas pelo próprio Noel Rosa, Mário Reis e Aracy de Almeida. Diz Máximo: “Não há como provar mas pode-se deduzir como e porque foi o samba do Estácio que Noel Rosa abraçou. Sua Vila Isabel era cercada de morros. Macacos, Mangueira, Telégrafo, Salgueiro, além de ser bairro de meio de caminho entre os subúrbios e o Centro. Noel nunca andou pela Cidade Nova, a não ser pelas ruas do Mangue, naturalmente com outros fins. Seus contatos com Pixinguinha e a turma da Pequena África só se dariam quando eles passassem a se encontrar nos estúdios de gravação nos aquários das rádios, nos palcos de teatro, todos já profissionais. Já com Canuto, Pururuca, Antenor Gargalhada e, logo depois, Ismael Silva, Bide, Lauro dos Santos, o Grandim, Ernani Silva, o Sete, Zé Pretinho, Manoel Ferreira e Angenor de Oliveira, o Cartola — negros que viviam nos morros ou estavam intimamente ligados às harmonias e ritmos do samba –, Noel Rosa não só conviveu, como também, detalhe importante, fez-se parceiro de todos eles. Definidor porque único e determinante. Único na medida em que nenhum outro branco, de classe média, com passagem por universidade, entregou-se a colaborações inter-raciais como o Noel dos três anos seguintes à sua saída do Bando de Tangarás. Observe-se, no rastro daquelas colaborações, que é quase possível traçar o roteiro — mapa da mina — dos morros cariocas visitados por ele em busca de samba,  Macacos, Ramos, Serrinha,Salgueiro, Mangueira, Favela, São Carlos, redutos dos dez sambistas negros enumerados no parágrafo anterior. Determinante se se tiver em conta que foi com base nessas parcerias, uns aprendendo com os outros, pedras brutas sendo buriladas, que Noel vai demarcar o caminho musical que seguirá até o fim: o do samba.”

Esse processo de rompimento com a forma maxixada de cantar e tocar o samba não foi simples. E Noel teve papel importante nessa guinada. É o próprio João Máximo quem explica: “O assunto é menos simples do que parece. Complica-se entre outros motivos, porque, em quase todos os discos de época – tanto os de Noel como os dos compositores de morro, com destaque para os do Estácio –, os sambas tinham sotaque amaxixado, as orquestras que acompanhavam cantores como Francisco Alves e Mário Reis entregues a baixarias típicas do maxixe. Quer dizer, sambas autenticamente do Estácio tornados híbridos pelos músicos e maestros  que, até ali, só conheciam a música da Cidade Nova. O importante é que duas passam a ser as principais contribuições de Noel Rosa à afirmação do samba como a música do Rio: uma, sua já abordada ligação com os sambistas de morro ( geralmente, com ele acrescentando segundas partes, música e letra, às primeiras que os sambistas lhe mostravam); e a outra, a reinvenção da lírica da música popular, tanto nos sambas em forma de crônica, sobre episódios e personagens do cotidiano, como, muito especialmente, na canção romântica. Seria a partir dali que, rompendo com os arroubos, preciosismos, pernosticismos mesmo de letristas derramados do tipo Catulo da Paixão Cerarense e Cândido das Neves, o Índio, Noel Rosa reafirmaria com brilho que qualquer tema pode ser cantado em música popular. E com uma linguagem para ser entendida pelo povo, pelo homem comum. O humor, a crítica, a ironia, a mentira, a vilania, a injustiça, a desonestidade, o dinheiro e a falta dele, os joões-ninguém e as marias-fumaças da cidade, tudo cabia em tudo inclusive no amor, e não apenas, como se acreditava até então, na liberada cantiga carnavalesca”.

    Noel Rosa: entre o morro e o asfalto

Noel subiu a ladeira para beber a água da bica do samba do morro. Quando desceu, não era mais o cantor do grupo Bando de Tangarás, com suas ingênuas canções regionais, chapéu de palha e lencinho no pescoço. Era um compositor que se tornaria um dos melhores que este país conheceu. Justa a homenagem que o erudito Radamés Gnatalli, autor de arranjos magistrais para músicas populares, lhe fez em 1972, ao compor o Concerto para Noel Rosa, para piano e orquestra, em três movimentos: Allegro (Pastorinhas); Adagio (Em Feitio de Oração); e Allegro Moderato (Conversa de Botequim), gravado com Arthur Moreira Lima ao piano, doze violinos, quatro violas, quatro violoncelos, dois contrabaixos, duas flautas, um flautim, dois oboés, corne inglês, fagote, trompa, prato, caixa e tímpano. Fraque e cartola para o menino da Vila.

Joel de Almeida e Gaúcho cantam Pierrô Apaixonado:

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