segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

ZÉ RENATO

A voz do morro

Zé Renato resgata a obra de Zé Keti


Por Julio Cesar Cardoso de Barros

Depois que Maria Bethânia gravou um CD só com músicas de Roberto Carlos, provando que um mais um pode ser igual a nada, e que Ney Matogrosso se perdeu em interpretações equivocadas num álbum rebolativo com o melhor das músicas de Chico Buarque, o disco Natural do Rio de Janeiro traz um alento à fórmula. Ao fazer um CD só com músicas do compositor José Flores de Jesus, o Zé Keti, Zé Renato, integrante do afinado e chato grupo Boca Livre, não comete o pecado em que os cantores da chamada MPB são pródigos quando gravam samba. Aberrações, como Simone cantando o samba-enredo Amanhã, têm sido a norma. Até a grande Elis Regina, que não entendeu o enredo de Alô, Alô, Taí Carmen Miranda, enfiou o pé na jaca, transformando o samba de escola mais sintético da história do Carnaval numa cantoria de bêbado enfastiado.
Zé Renato é um intérprete conservador, no sentido de que é fiel à versão original dos sambas que grava. Exatamente como fez Mário Reis, Nara Leão e como faz ainda hoje Beth Carvalho. Ele não pleiteia parceria quando canta, como Marisa Monte, que faz de Cartola um compositor enjoado. Zé Keti assina os sambas, feitos há décadas, entre eles clássicos como Opinião e A Voz do Morro. Ponto final. Zé Renato apenas os reapresenta à apreciação da ignorância musical do país mais sem memória do planeta. Como reinventar a marcha Máscara Negra, cantada até hoje nos salões de Carnaval com uma fidelidade quase religiosa pelos foliões? Melhor: para que reinventar Máscara Negra? Isso de reinventar a roda não é para qualquer João, é preciso ter a genialidade de um João Gilberto para valer a pena. Talvez pensando nisso, humildemente e com a boa voz que Deus lhe deu, Zé Renato consegue cumprir sua tarefa com honestidade.
EMBOCADURA — As interpretações limpas, emolduradas por arranjos ricos em cordas, valorizam as velhas melodias desse que é um dos titulares do primeiro time da música brasileira, aí incluídos Noel Rosa e Tom Jobim. Quem duvidar que ouça Leviana, Malvadeza Durão ou o sincopado Nega Dina. De quebra, Zé Renato conta com a participação de Elton Medeiros, um grande incentivador do projeto desse disco, na faixa Amor Passageiro. Elton aparece também como compositor em duas faixas, Mascarada e Psiquiatra, parcerias inspiradíssimas com Zé Keti. São preciosidades pouco conhecidas do grande público, mas que enriquecem esse Natural do Rio de Janeiro, um disco que resgata a obra de um sambista genial, que aos 75 anos de idade, meio adoentado, andava recolhido ao anonimato. Aos 40 anos, Zé Renato, que anteriormente já gravara um álbum em homenagem ao seresteiro Silvio Caldas, pode-se especializar nessa fórmula. Tem a embocadura para a coisa e o mote bem perto de casa: mora na Gávea, bairro vizinho do Leblon, no Rio de Janeiro, onde vive Elton Medeiros.

VEJA, 03/07/1996. 

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