sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

NOEL ROSA

O poeta maior


Por Julio Cesar Cardoso de Barros

No dia 11 de dezembro de 2010 comemoramos o centenário de nascimento de Noel Rosa, um dos mais prolíficos compositores brasileiros, nome maior do samba, autor de músicas que nunca saem de pauta e resistem geração após geração, sendo gravadas e regravadas infinitamente, como Gago Apaixonado, Com Que Roupa?, Três Apitos, Feitio de Oração, Feitiço da Vila, Conversa de Botequim, Palpite Infeliz, Último Desejo, Pastorinhas, Positivismo, Pierrô Apaixonado entre as cerca de 250 canções que compôs em sua curta existência de 26 anos. Noel foi boêmio, mulherengo e abusava do álcool. A vida desregrada afetou tanto sua saúde quanto sua situação financeira, o que o obrigou certa vez a empenhar o próprio instrumento de trabalho, seu violão, para levantar dinheiro. Quase nada se sabe da infância de Noel Rosa. Um pouco dessa infância é descrito no livro Noel, O Menino da Vila, lançado em 2010, que reúne ficção e realidade, escrito a quatro mãos pelos irmãos Clóvis e Márcia Bulcão, com capa e ilustrações da artista plástica curitibana Iara Teixeira:

“Como muitos meninos, Noel cresceu saboreando todas as delícias de Vila Isabel. Era livre para brincar na rua, empinar pipa, jogar botão, pegar o bonde andando e, em junho, sempre soltava balão. Adorava subir na Pedreira do Simões e lá do alto gritar para o mundo: 
– Ale-lê-oooo. 
Apesar de ser o menor e o mais magro da turma, Noel sempre liderava os amigos na hora das brincadeiras. Corria de vento em popa, pulando como sapo, escapando até de praga de urubu. E quando implicavam com seu tipo físico mirradinho, rebatia achando graça: 
– Quem foi que disse que eu era forte? Nunca pratiquei esporte. 
Mas não era só por ser magrinho que o provocavam. Como tinha o queixo muito pra dentro, acabou ficando conhecido na Vila por Queixinho.”  


Dá para imaginar as peripécias do garoto num Rio de Janeiro de confeitarias elegantes e morros já apinhados de gente pobre, que perambulava pelas ruas como pregoeiros, carregadores, estivadores e outros expedientes, na luta pela sobrevivência. Um Rio de sambas e batucadas, de chorinho e serenatas. O que se sabe é que Noel nasceu na Vila Isabel e lá viveu na mesma casa da Rua Teodoro da Silva, por 26 anos. Era filho de uma professora com um comerciário, e tinha um irmão, Hélio, quatro anos mais novo que ele. O pai se suicidaria mais tarde, durante internação num sanatório para doenças mentais. A mãe, que lecionava em casa, ensinou-lhe as primeiras letras. Ele completou os estudos básicos nos Colégios Maisonnete e São Bento, onde estudou até os 18 anos. Cursou a faculdade de Medicina até o terceiro ano. Da arte de Hipócrates, restou como herança o samba Coração, no qual diz: Coração/Grande órgão propulsor/Transformador do sangue/Venoso em arterial. Já era compositor respeitado, e decidiu-se pela carreira artística, num mercado que apenas engatinhava. Aos 23 anos casou-se com Lindaura, de 13, a quem engravidara. Ela perdeu o bebê e ele não deixou herdeiros.


    O violão: companheiro de orgia

Aos 24 anos, a vida promíscua que levava, entre a zona boêmia e a zona do meretrício havia minado sua saúde. Com os dois pulmões afetados pela tuberculose, internou-se para tratamento em Belo Horizonte, primeiro, e depois em Nova Friburgo, na região serrana do Estado do Rio e em Barra do Piraí, no Vale do Paraíba. Apesar da doença e das internações, ele nunca abandonou a noite, apresentando-se como cantor tanto na capital mineira quanto na serra fluminense, e frequentando os bares das cidades. Seguiram-se outras internações, mas os hábitos de vida do poeta o haviam condenado. Ricardo Cravo Albin descreveu assim, sua morte, ocorrida em 1937, quando contava escassos 26 anos: “Morreu na noite do dia 4 de maio, enquanto em frente à sua casa comemoravam o aniversário de uma vizinha numa festa em que tocavam suas músicas. Diversas versões sobre sua morte foram publicadas em diferentes jornais e biografias, onde se fez referência até a um ataque cardíaco. Ao seu enterro compareceram muitas personalidades da música e do rádio. À beira de seu túmulo, Ary Barroso fez um discurso emocionado, homenageando o amigo e parceiro”. Noel viveu intensamente, bebeu demais, farreou, enveredou na orgia. Não foram poucas as vezes em que subiu o morro e por lá permaneceu, cantando samba, ouvindo os poetas do lugar e bebendo. É parte do folclore da MPB as carraspanas que tomou, a ponto de ter sido cuidado por Deolinda, mulher de Cartola, que chegava a lhe dar banho e colocá-lo na cama, como se se trata-se de um filho. Na sua Vila, no Estácio de Ismael Silva ou no morro da Mangueira, de Cartola, o samba era sempre acompanhado do álcool, em doses industriais. 

    Lindaura chora no túmulo do marido
   
Uma carreira curta e brilhante
Noel de Medeiros Rosa foi um músico precoce, cujo talento saltou aos ouvidos de todos que o cercavam ainda durante a infância. Aprendeu a tocar violão com o pai e amigos, bandolim aprendeu por conta própria, e ainda criança fazia serenatas pelo bairro. Sua paixão pela música popular, que era grande, aumentou depois que conheceu Sinhô, o Rei do Samba, que tomou-se de amizade pelo garoto. Em 1929 Noel juntou-se a Almirante, Braguinha, Alvinho e Henrique Brito para formar o Bando de Tangarás, que se apresentava em festas e no rádio. Com o Bando gravou ritmos regionais, que dominavam o incipiente mercado. Eram sons nordestinos e sertanejos, como a embolada, a toada, o cateretê e o maxixe. No mesmo ano, começou a compor. É dessa época a embolada Minha Viola: Minha viola/Tá chorando com razão/ Com saudade da marvada/ Que roubou meu coração. No ano seguinte, gravou Com Que Roupa, seu primeiro sucesso. Daí por diante as músicas saíram de seu violão aos borbotões. Foi descoberto pelos grandes intérpretes da época e gravado com sucesso ao longo de toda a sua curta vida restante. Suas canções, de melodias belas e letras que falavam do cotidiano da gente do Rio numa linguagem simples, direta, porém inspirada, eram requisitadas para o teatro de revista, para os musicais de auditório nas emissoras de rádio – todas o queriam na programação, chegou a ter emprego fixo no programa Casé, da Rádio Phillips – e para shows em casas de espetáculos. Seu talento para arrancar o riso em letras que narravam as vicissitudes da vida e as armadilhas do cotidiano encantava o público, a crônica e os pares.

    Com Francisco Alves, Carmen Miranda e Almirante no estúdio da Rádio Tupi

Mas o sucesso não deslubrou o jovem compositor, assíduo freguês do famoso Café Nice, na Avenida Rio Branco, 174, esquina com Bittencourt da Silva, no Centro, mas que não deixava de frequentar os cafés simples de sua Vila, onde mantinha contato com os sambistas dos morros da Zona Norte da cidade, com os quais descobriu um novo jeito de compor e cantar o samba. Menos corta-jaca e mais sincopado. Desse contato surgiu o estilo que consagrou Noel. Foi parceiro de gente do asfalto, como Custodio Mesquita (Prazer em conhecê-lo), Orestes Barbosa (Positivismo), Nássara (Retiro da Saudade), Lamartine Babo (A-B-Surdo e A, E, I, O, U), João de Barro (Linda Pequena e Pastorinha), Hervé Cordovil (Leite com Café e Triste Cuíca), Vadico (Feitiço da Vila e Conversa de Botequim) e Ary Barroso (Estrela da Manhã e Mão no Remo). De de gente do morro, como Ismael Silva (Para Me Livrar do Mal), Wilson Batista (Deixa de Ser Convencido), Cartola (Não Faz Amor), Antenor Gargalhada (Agora Eu Fiquei Mal) e Heitor dos Prazeres (Pierrô Apaixonado), e da velha guarda, como Donga (Não Há Castigo). E sozinho fez exeplares inesquecíveis de nosso cancioneiro: Fita Amarela, Cinema Falado, Gago Apaixonado, Onde Está a Honestidade, Palpite Infeliz, Rapaz Folgado, Último Desejo e Três Apitos.


Noel fez dezenas de parcerias com Francisco Alves, o Rei da Voz. Mas é sabido que Chico Viola, como era também chamado, tinha costume de comprar músicas e de gravar canções com a condição de ganhar sua parceria. Assim, seu nome aparece em A Razão Dá-se a Quem Tem, Adeus, Assim, Assim, Esquina da Vida e outras. Algumas fruto de parcerias reais, outras, de sociedade duvidosa. Mas a importância de Chico Alves na carreira do compositor é fundamental. Em 1932, ele gravou os sambas Ando Cismado e Nuvem que Passou (com Ismael Silva) e convidou Noel para integrar seu trio Bambas do Estácio. Com ele Noel excursionou, fez shows e emplacou sucessos no rádio. Mário Reis foi outro de seus grandes intérpretes. Com sua voz comedida e seu jeito cool, Reis gravou Fita Amarela e Vai Haver Barulho no Chatô, em 1933. Outro grande intérprete de Noel foi Silvio Caldas, que dele gravou Pra Que Mentir. Aracy de Almeida é apontada como sua grande intérprete feminina, voz que consagrou Rapaz Folgado e tantas outras. Mas Aracy parece ter-se firmado como uma intérprete roseana depois da morte do poeta, que segundo Ricardo Cravo Albin considerava Marília Barbosa, que lhe gravou Quem Dá Mais? e Coração, no seu disco de estréia, em 1932, como a preferida do poeta. Seus sambas, marchas e marchinhas fizeram sucesso também no Carnaval, em parcerias nobres com os reis do gênero, como Braguinha (Linda Pequena e Pastorinhas), Lamartine Babo (A, E, I, O, U) e em composições solo, como Até Amanhã, grande sucesso no Carnaval de 1933.

    A polêmica histórica
    A briga em disco da Odeon: ilustração de Nássara

A polêmica com Wilson Batista marcou a carreira de Noel, mas a briga funcionou como o que hoje seria considerado uma jogada de marketing. Tudo começou em 1933, quando Noel respondeu com o samba Rapaz Folgado, na voz de Aracy de Almeida, à apologia da malandragem feita por Wilson Batista em Lenço no Pescoço, gravado por Silvio Caldas.

Wilson cantou:

Meu chapéu do lado

Tamanco arrastando

Lenço no pescoço

Navalha no bolso

Eu passo gingando

Provoco e desafio

Eu tenho orgulho

Em ser tão vadio



Noel replicou:


Deixa de arrastar o teu tamanco

Pois tamanco nunca foi sandália

E tira do pescoço o lenço branco

Compra sapato e gravata

Joga fora esta navalha que te atrapalha



Rose Maia canta Rapaz Folgado:


Wilson treplicou:

Você que é mocinho da Vila

Fala muito em violão

Barracão e outros fricotes mais

Se não quiser perder

Cuide do seu microfone e deixe

Quem é malandro em paz

Injusto é seu comentário

Falar de malandro quem é otário

Mas malandro não se faz

Eu de lenço no pescoço desacato
E também tenho o meu cartaz



Noel não respondeu e a coisa poderia ter parado por aí, não fosse Batista encafifar com o sucesso de Feitiço da Vila, parceria de Noel com Vadico, que fazia uma apologia escancarada aos encantos da Vila Isabel e de seus poetas:


Lá, em Vila Isabel

Quem é bacharel

Não tem medo de bamba

São Paulo dá café

Minas dá leite

E a Vila Isabel dá samba


Orlando Silva canta Feitiço da Vila:

Cheio de dor-de-cotovelo, Batista atacou com Conversa Fiada:


É conversa fiada dizerem

Que o samba na Vila tem feitiço

Eu fui ver para crer

E não vi nada disso

A Vila é tranquila

Porém eu vos digo: cuidado!

Antes de irem dormir

Dêem duas voltas no cadeado



O ataque à Vila pareceu a Noel um despropósito. Com trânsito em todos os morros da Zona Norte e bairros da Cidade Nova, foi diplomático em Palpite Infeliz, com Aracy de Almeida:



Quem é você que não sabe o que diz?

Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!

Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira

Oswaldo Cruz e Matriz

Que sempre souberam muito bem

Que a Vila Não quer abafar ninguém

Só quer mostrar que faz samba também


João Gilberto canta Palpite Infeliz (de quebra, um passeio de bonde pelo velho Rio):

À diplomacia de Noel, Wilson Batista respondeu com grosseria inominável, ressaltando o problema físico de Noel, cujo queixo trazia sequelas de um parto feito a fórceps. E assim atacou, em Frankenstein da Vila:

Boa impressão nunca se tem

Quando se encontra um certo alguém

Que até parece um Frankenstein

Mas como diz o rifão: por uma cara feia

Perde-se um bom coração

Entre os feios és o primeiro da fila

Todos reconhecem lá na Vila

Essa indireta é contigo

E depois não vá dizer

Que eu não sei o que digo
Sou teu amigo



Ninguém se atreveu a gravar algo tão ofensivo, mas o samba correu de boca em boca e foi cantado nas rádios. Não contente com o ataque cruel, Batista deu um golpe de misericórdia em Terra de Cego, que ninguém gravou, também:



Perde a mania de bamba

Todos sabem qual é

O teu diploma no samba

És o abafa da Vila, eu bem sei

Mas na terra de cego

Quem tem um olho é rei



A polêmica não prosseguiu porque Noel deu-lhe um final civilizado. Botou nova letra no samba de Batista, encerrando a polêmica. Terra de Cego ganhou novo título, Deixa de Ser Convencido, e ficou assim:



Deixa de ser convencido

Todos sabem qual é

Teu velho modo de vida

És um perfeito artista

Eu bem sei

E no picadeiro desta vida

Serei o domador

serás a fera abatida




Noel sobe o morro

Convencionou-se que o primeiro samba gravado no Brasil foi Pelo Telefone, de Mauro de Almeida e Donga cantado por Baiano. É um marco, mas logicamente outras músicas do gênero já existiam. Eram o resultado da influência do maxixe e do samba-de-roda que os baianos trouxeram para o Rio e cantavam nas festas das tias da zona portuária da Gamboa e da Saúde, num movimento que depois se espalhou pela Cidade Nova, com a modernização do centro e a derrubada das moradias precárias onde viviam os negros. Pelo Telefone era mais um maxixe que o samba como o conhecemos. O samba moderno é uma evolução surgida nos morros da Mangueira e do Salgueiro e nos bairros do Estácio e Vila Isabel, fruto da troca entre sambistas das favelas e do “asfalto”. Compositores da cidade, que subiam o morro para batucadas memoráveis e compositores do morro desciam para frequentar os cafés, que eram pontos de encontro de artistas, criaram um novo modo de cantar o samba. Baiaco, Brancura, Bide, Ismael Silva e muitos outros autores já almejavam, por essa época, a profissionalização. O primeiro samba de Ismael Silva, gravado por Francisco Alves em 1927 (Me Faz Carinho), é um marco do nascimento do samba carioca, que resiste até hoje. Um exemplar esplêndido dessa safra de sambas é Se Você Jurar. Noel se interessou pelo samba que era feito nos morros que rodeavam sua Vila, pelo samba do Estácio de Ismael Silva, pelo samba carioca por excelência, aquele que rompeu com o maxixe e que coube a ele dar roupagem definitiva.


No livro O Morro e o asfalto no Rio de Janeiro de Noel Rosa, de João Máximo, lançado no início de 2010 pela editora Aprazível para comemorar o centenário do artista da Vila Isabel, é esclarecedor e ajuda a entender o samba carioca. O livro traz 180 fotografias e um CD com 14 músicas interpretadas pelo próprio Noel Rosa, Mário Reis e Aracy de Almeida. Diz Máximo: “Não há como provar mas pode-se deduzir como e porque foi o samba do Estácio que Noel Rosa abraçou. Sua Vila Isabel era cercada de morros. Macacos, Mangueira, Telégrafo, Salgueiro, além de ser bairro de meio de caminho entre os subúrbios e o Centro. Noel nunca andou pela Cidade Nova, a não ser pelas ruas do Mangue, naturalmente com outros fins. Seus contatos com Pixinguinha e a turma da Pequena África só se dariam quando eles passassem a se encontrar nos estúdios de gravação nos aquários das rádios, nos palcos de teatro, todos já profissionais. Já com Canuto, Pururuca, Antenor Gargalhada e, logo depois, Ismael Silva, Bide, Lauro dos Santos, o Grandim, Ernani Silva, o Sete, Zé Pretinho, Manoel Ferreira e Angenor de Oliveira, o Cartola — negros que viviam nos morros ou estavam intimamente ligados às harmonias e ritmos do samba –, Noel Rosa não só conviveu, como também, detalhe importante, fez-se parceiro de todos eles. Definidor porque único e determinante. Único na medida em que nenhum outro branco, de classe média, com passagem por universidade, entregou-se a colaborações inter-raciais como o Noel dos três anos seguintes à sua saída do Bando de Tangarás. Observe-se, no rastro daquelas colaborações, que é quase possível traçar o roteiro — mapa da mina — dos morros cariocas visitados por ele em busca de samba,  Macacos, Ramos, Serrinha,Salgueiro, Mangueira, Favela, São Carlos, redutos dos dez sambistas negros enumerados no parágrafo anterior. Determinante se se tiver em conta que foi com base nessas parcerias, uns aprendendo com os outros, pedras brutas sendo buriladas, que Noel vai demarcar o caminho musical que seguirá até o fim: o do samba.”

Esse processo de rompimento com a forma maxixada de cantar e tocar o samba não foi simples. E Noel teve papel importante nessa guinada. É o próprio João Máximo quem explica: “O assunto é menos simples do que parece. Complica-se entre outros motivos, porque, em quase todos os discos de época – tanto os de Noel como os dos compositores de morro, com destaque para os do Estácio –, os sambas tinham sotaque amaxixado, as orquestras que acompanhavam cantores como Francisco Alves e Mário Reis entregues a baixarias típicas do maxixe. Quer dizer, sambas autenticamente do Estácio tornados híbridos pelos músicos e maestros  que, até ali, só conheciam a música da Cidade Nova. O importante é que duas passam a ser as principais contribuições de Noel Rosa à afirmação do samba como a música do Rio: uma, sua já abordada ligação com os sambistas de morro ( geralmente, com ele acrescentando segundas partes, música e letra, às primeiras que os sambistas lhe mostravam); e a outra, a reinvenção da lírica da música popular, tanto nos sambas em forma de crônica, sobre episódios e personagens do cotidiano, como, muito especialmente, na canção romântica. Seria a partir dali que, rompendo com os arroubos, preciosismos, pernosticismos mesmo de letristas derramados do tipo Catulo da Paixão Cerarense e Cândido das Neves, o Índio, Noel Rosa reafirmaria com brilho que qualquer tema pode ser cantado em música popular. E com uma linguagem para ser entendida pelo povo, pelo homem comum. O humor, a crítica, a ironia, a mentira, a vilania, a injustiça, a desonestidade, o dinheiro e a falta dele, os joões-ninguém e as marias-fumaças da cidade, tudo cabia em tudo inclusive no amor, e não apenas, como se acreditava até então, na liberada cantiga carnavalesca”.

    Noel Rosa: entre o morro e o asfalto

Noel subiu a ladeira para beber a água da bica do samba do morro. Quando desceu, não era mais o cantor do grupo Bando de Tangarás, com suas ingênuas canções regionais, chapéu de palha e lencinho no pescoço. Era um compositor que se tornaria um dos melhores que este país conheceu. Justa a homenagem que o erudito Radamés Gnatalli, autor de arranjos magistrais para músicas populares, lhe fez em 1972, ao compor o Concerto para Noel Rosa, para piano e orquestra, em três movimentos: Allegro (Pastorinhas); Adagio (Em Feitio de Oração); e Allegro Moderato (Conversa de Botequim), gravado com Arthur Moreira Lima ao piano, doze violinos, quatro violas, quatro violoncelos, dois contrabaixos, duas flautas, um flautim, dois oboés, corne inglês, fagote, trompa, prato, caixa e tímpano. Fraque e cartola para o menino da Vila.

Joel de Almeida e Gaúcho cantam Pierrô Apaixonado:

ZÉ ESPINGUELA

O pai de santo e os maestros



Por Julio Cesar Cardoso de Barros


Em 1945, morreu no Rio de Janeiro, aos 55 anos, José Gomes da Costa, o Zé Espinguela, que juntamente com Cartola e Carlos Cachaça fundou o Bloco dos Arengueiros, semente da escola de samba Estação Primeira de Mangueira. Jornalista, compositor, cantor, escritor, pai de santo e folião, Espinguela promoveu o primeiro concurso de escolas de samba, em 20 de janeiro de 1929, no Engenho de Dentro, bairro do subúrbio carioca onde morava e mantinha seu terreiro de macumba. Paulo Benjamim de Oliveira, o Paulo da Portela, comandou a vitória do conjunto de Osvaldo Cruz. Participaram grupos da Mangueira e da Deixa Falar, a primeira escola de samba a ser criada, no bairro do Estácio. Não se tratava ainda de um cortejo carnavalesco. No concurso, realizado no quintal da casa de Espinguela, na atual rua Adolfo Bergamini, cada grupo apresentava dois sambas puxados pelos autores, com auxílio de um coral de pastoras, e o júri decidia qual era o melhor conjunto.

Stokowski com Villa-Lobos: a serviço do Departamento de Estado 

Espinguela conheceu o maestro Villa-Lobos, a quem apresentou as nuanças dos folguedos populares do Rio de então, com seus rituais africanos e rodas de jongo e  samba. Em troca, Villa-Lobos o indicou a Leopoldo Stokowski (1882-1977), que em 1940 buscava músicos populares brasileiros para fazer uma gravação destinada ao Congresso Pan-Americano de Folclore. “Stokowski viajava sob o patrocínio do Departamento de Estado americano, que desenvolvia na América do Sul a Política da Boa Vizinhança, criada pelo presidente Franklin Delano Roosevelt”, conta o jornalista e crítico musical Ary Vasconcelos. O resultado do trabalho do maestro inglês foi um disco que só saiu no Brasil em 1987, 47 anos depois das gravações, produzido pelo Museu Villa-Lobos. Gravado a bordo do navio Uruguai, sob a supervisão de Stokowski e organização de Villa-Lobos, como informou o jornalista Aramis Millarch na época de seu lançamento, o disco reuniu autores como Pixinguinha, Cartola, Donga e João da Baiana.

    Villa Lobos no ensaio do Sodade do Cordão

Ainda sob inspiração de Villa Lobos, Espinguela criou em 1940 o nostálgico Sodade do Cordão, grupo carnavalesco que tentava reviver os “bons tempos da folia”. Espinguela viveria pouco. Em 1944, pressentindo que o fim se aproximava, convocou seus fiéis do terreiro do Engenho de Dentro e foi à Mangueira despedir-se  dos amigos e das namoradas, que sempre manteve, longe do olhar da patroa ciumenta. O morro foi acordado de madrugada pelo canto do cortejo em homenagem ao morto que, ainda vivo, puxava o coro com ajuda das pastoras. “Ele acordou o morro todo anunciando que iria falecer. Fez uma música só para isso. E morreu dois dias depois”, diz Raymundo de Castro, velho mangueirense. Eis a letra cantada pela turma do Espinguela:


Bem que eu quero esperarMas existe um porém

Sinto a minha memória cansada
Essa simples melodia
Serve de último adeus
Adeus, escola de samba
Adeus, MangueiraAdeus.


    Villa-lobos no ensaio do Sodade do Cordão (1940)

Por ocasião do Dia Nacional do Samba, em 2008, o repórter Marcos Uchôa, da TV Globo, fez uma reportagem para o Jornal Nacional que reproduz o evento em que Espinguela e seu grupo se despedem da Mangueira. No final da reportagem, Heitor dos Prazeres Filho canta o samba despedida:


NELSON SARGENTO

O poeta da Mangueira



Por Julio Cesar Cardoso de Barros


Nelson Sargento é do tempo da zagaia. Do tempo em que se amarrava cahorro com linguiça. Mas ele está na moda. Mais atual que nunca. Dono de uma memória invejável, ele relembra histórias esquecidas e sambas perdidos. Chegou a resgatar alguns de Cartola. Fonte permanente de consultas para a elaboração de reportagens, livros ou filmes, Sargento é a memória viva do samba carioca e do morro da Mangueira.  Disponível a quantos o procuram, ele é o rei da simpatia. Otimista, feliz, nunca nega um sorriso a quem dele se aproxima (mesmo quando andava desfalcado do teclado, abria aquele sorriso, de escassos dentes, de quem está de bem com a vida). Nelson (Mattos) Sargento, nasceu na Praça XV, no centro do Rio de Janeiro, no dia 25 de julho de 1924, e ganhou o apelido quando serviu o  Exército, nos anos 40.  Aos 8 anos de idade já desfilava tocando tamborim na Escola de Samba Azul e Branco do morro do Salgueiro, onde morava. Quando sua mãe, viúva, juntou-se ao marinheiro mercante Alfredo Lourenço, o Alfredo Português, ele foi morar no aglomerado de Santo Antonio, no morro da Mangueira. Tinha 12 anos de idade. Cresceu vendo os ensaios do samba e ouvindo as composições de Cartola e Nelson Cavaquinho, que lhe ensinaram a tocar o violão. Logo virou parceiro do padrasto, que era letrista respeitado no morro e passou a escrever suas poesias para o rapaz musicar. Em 1947, quando Nelson estava com 23 anos, Alfredo passou a integrar a ala de compositores da Mangueira e o enteado foi junto. Da parceria com Alfredo saíram Vale do São Francisco, samba-enredo de 1948, Samba do operário (com participação de Cartola) e Freira mais querida (isso mesmo, uma homenagem a alguma freira, com a parceria de Nelson Cavaquinho). A dupla venceria o concurso de samba enredo da escola em 1949 (Apologia ao Mestre) e 1950 (Plano Salte – Saúde, Lavoura, Transporte e Educação), garantindo o título de bi-campeã para a verde e rosa no Carnaval. A escola foi vice-campeã em 1955 com Cântico à natureza (enredo: “As quatro estações do ano”), uma parceria da dupla com Jamelão, cujo refrão marcante dizia:



Oh! Primavera adorada

Inspiradora de amores
Oh! Primavera idolatrada
Sublime estação das flores


Ouça Cântico à natureza, com Nelson Sargento:

O samba é considerado até hoje o melhor da escola em todos os tempos. Com o impulso de seu sucesso no Carnaval, Sargento passou a fazer parcerias com outros grandes nomes da nossa música. Além de Alfredo Português, Cartola, Jamelão e Nelson Cavaquinho, ele fez sambas com Guilherme de Brito, Ivone Lara, Nei Lopes, Jair do Cavaquinho, Darcy da Mangueira e João de Aquino. Gravado por Chico Buarque e Beth Carvalho, entre outros, seu samba Agoniza mas não morre virou um clássico do gênero. Falso amor sincero revela o lado satírico do autor:


O nosso amor é tão bonito

Ela finge que me ama
E eu finjo que acredito


Dorina e Walter Alfaiate contam Falso amor sincero:

 Esse tipo de humor é presente ao longo da obra do compositor, que é capaz de cantar versos do mais puro nonsense, como esses, que fez com Andinho Golçalves:


Fui fazer o meu samba

Na mesa de um botequim
Depois de umas e outras
O samba ficou assim
Estrambonático, palipopético
Cilalenítico, estapafúrdico
Protopológico, antropofágico
Presolopépipo, atroverático
Batunitétrico, pratofinandolo
Calotolético, caranbolambolu
Posolométrico, pratofilônica
Protopolágico, canecalônica
É isso aí, é isso aí
Ninguém entendeu nada
Eu também não entendi



Os anos 60 foram encontrar Sargento tocando no grupo que animava o lendário Zicartola, o restaurante de Dona Zica e Cartola, que virou ponto de encontro de sambistas e intelectuais, na rua da Carioca, 53, centro do Rio. Mas a carreira profissional de Nelson Sargento deslanchou quando participou do show Rosas de Ouro, dirigido por Hermínio Bello de Carvalho, em 1965, com a participação de Elton Medeiros, Paulinho da Viola, Jair do Cavaquinho, Anescarzinho do Salgueiro, Clementina de Jesus e Aracy Cortes. Do show saíram dois LPs, já lançados em CD. Integrou, depois, o grupo Voz do Morro – do qual participavam Paulinho da Viola, Zé Kéti, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, José da Cruz e Anescarzinho do Salgueiro - que gravou três LPs, dois em 1965 e um em 1966, todos já lançados em CD. Sargento participou dos dois últimos. Fez parte ainda de Os Cinco Crioulos, composto por alguns sambistas do Rosa de Ouro e do Voz do Morro, aos quais se juntou o compositor Mauro Duarte. Entre 1967 e 1969 o novo grupo gravou três álbuns. Deste grupo faziam parte, além de Mauro Duarte e Nelson Sargento, Anescarzinho, Elton Medeiros e Jair do Cavaquinho. Em 1979, o selo Eldorado gravou o primeiro disco solo de Sargento, Sonho de um sambista. Seguiram-se mais oito discos de carreira e várias coletâneas (veja a discografia abaixo). Depois de velho, ele, que na juventude foi pintor de paredes, começou uma nova carreira, a de pintor de quadros, com relativo sucesso. Afinal, independentemente do valor artístico, quem não gostaria de ter uma tela do Sargento? Mas o sambista não faz feio com os pincéis. Porém, é o compositor quem se destaca. O reconhecimento ao seu valor veio na forma de diversas homenagens. Moacyr Luz e Aldir Blanc compuseram Flores em vida, no qual os versos exaltam:



Sargento apenas no apelido

Guerreiro negro dos Palmares
Nelson é o Mestre-Sala dos mares
Singrando as águas da Baía


A música deu nome ao disco de 2002, indicado para o prêmio Grammy de melhor álbum de samba. O cineasta Estêvão Pantoja dirigiu o documentário Nelson Sargento da Mangueira (1997), premiado no VIII Festival de Curtas-Metragens de São Paulo e ganhador de um kikito, no Festival de Cinema de Gramado. No Rio Cine de 1997, o filme ganhou outros prêmios: Melhor Montagem, Prêmio Especial da Crítica  e Prêmio Especial do Júri. No documentário, ele relembra os 40 anos que viveu na colina, os sambas que compôs para a escola cantar e suas poesias exaltando o lugar, como O encanto da paisagem, que dá título ao seu segundo disco solo:


Morro, és o encanto da paisagem

Suntuoso personagem de rudimentar beleza
Morro, progresso lento e primário
És imponente no cenário
Inspiração na natureza



Nelson também escreve. Ele é autor dos livros Prisioneiro do Mundo (poemas, 1994), O samba e eu (contos, 2003) e Pensamentos (ensaios, 2008). É ainda co-autor de uma biografia de Geraldo Pereira (Um certo Geraldo Pereira, Funarte, 1983).


Nelson canta com Teresa Cristina Agoniza mas não morre:

DISCOGRAFIA

Sonho de um sambista 
Eldorado – (1979) – LP
     


Encanto da paisagem – Kuarup – (1986) – LP

 

Inéditas - Clube da Criação de São Paulo
(1990) – LP

Só Cartola – Elton Medeiros, Nelson Sargento
e Galo Preto – (1998) – CD



Inéditas de Cartola – (1999  ) – CD

Velhas companheiras  - (2000)
Com Monarco e Guilherme de Brito – CD


Flores em vida – (2002) 

selo Rádio MEC - CD

 O dono das calçadas – (2003) – 

Com Soraya Ravenle e Galo Preto – CD

  

Nelson Sargento 80 anos – (2004)
caixa com  reedição de 4 CDs


Versátil – (2009) – CD





 PARTICIPAÇÕES, COLETÂNEAS

 e CONJUTOS




Elizeth sobe o morro – (1965) – LP





Rosa de ouro 1 – vários artistas – (1965) – LP


Voz do morro – Roda de samba 2
vários – (1965) – LP


Voz do morro – Os sambistas – vários 
(1966) – LP


Rosa de ouro 2 – vários artistas

(1967) – LP

Samba no duro – Os cinco 

crioulos – vários – (1967) – LP


Samba no duro 2 - Os cinco crioulos 
vários – (1968) – LP


Mudando de Conversa – 

(1968) – LP

Samba no duro 3 
Os cinco crioulos – vários (1969) 

Velha Guarda da Mangueira 
LP – sem data

História das Escolas de Samba
Mangueira – vários – (1974) – LP


Geraldo Pereira – Evocação 

 (1980) – LP

Mangueira chegou - Velha-
Guarda da Mangueira - (1989) – CD


Brazil Roots Samba – 
vários (1998) – CD


Casa da Mãe Joana – vários (1998) – CD

 

Mangueira – Sambas de terreiro e 
outros sambas  - (2000) – CD 

Paulinho da Viola e os quatro crioulos – 
vários (2000) – CD

This Is Samba Volume 2 
vários (2000) – CD


Os meninos do Rio – vários artistas

2001 – CD


 Aquarela do Samba - (2003) – CD


Simply Brazil - vários – (2006) – CD 



VEJA.COM 14/07/2010