A Rainha Ginga dos cafezais
Por Julio Cesar de
Barros
Neste ano em que
o samba, representado pelo maxixe Pelo
Telefone, completa um século de seu lançamento (saiu em janeiro de 1917,
embora registrado em 1916), outra data engorda a lista de efemérides
relacionadas ao gênero: os 30 anos da morte de Clementina de Jesus. A cereja do
bolo que marca a data é o livro Quelé, a
voz da cor: biografia de Clementina de Jesus, de Felipe Castro, Janaína
Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz (Civilização Brasileira). Tudo começou
como um trabalho de conclusão de curso na faculdade, mas depois de seis anos de
pesquisa virou uma obra que preenche um vazio na história da música brasileira
de influência africana. A história de uma negra pobre, que deu duro na vida e
venceu num campo que não escolheu para jogar. Foi nele colocada pelo acaso e
não fez feio.
Nascida na
cidade fluminense de Valença, no dia 7 de fevereiro de 1901, neta de escravos, filha
de um operário da construção civil, que tocava viola e jogava capoeira, com uma
parteira-rezadeira vindos de Minas Gerais, Clementina cresceu no Rio de Janeiro,
para onde se mudou com a família ainda criança. Desde pequena, Quelé, apelido
que ganhou ainda na cidade natal, teve contato com as mais diversas formas de
manifestação musical folclórica, religiosa e popular. Das profanas rodas de
samba ao ecumênico canto religioso, que ia do ponto de candomblé à ladainha
católica, passando por manifestações intermediárias, como o jongo, que têm um
pé na terra e outro no mistério. Morou em Jacarepaguá, na Zona Oeste,
mudando-se depois para Osvaldo Cruz, terra de sambistas na Zona Norte do Rio. Dançou
o pastoril – auto de Natal que lembra a visita dos Reis Magos ao menino Jesus –
e organizou procissões. Conviveu com Heitor dos Prazeres, Donga, João da Baiana
e Pixinguinha. Testemunhou a criação da Portela, e frequentou rodas de samba
nos quintais do subúrbio, Cidade Nova, Saúde, Gamboa e Praça Onze, a chamada Pequena
África, ponto de encontro de sambistas e capoeiras. Conheceu a famosa baiana Tia
Ciata, cuja casa era frequentada por pioneiros do batuque urbano carioca. Mãe
solteira aos 20 anos, morou também no morro da Mangueira, levada pelo segundo marido,
Albino Pé Grande, com quem se casou em 1950. Integrou-se à verde e rosa, na
qual desfilou na ala das baianas, e na Velha Guarda.
Em 1964, Clementina
trabalhava como empregada doméstica no Grajaú e cantava nas horas vagas, quando,
aos 63 anos, foi “achada” pelo poeta Hermínio Bello de Carvalho. Pelas mãos de
Hermínio, se apresentou como atração no famoso Zicartola. Num desafio maior, Hermínio
a apresentou, acompanhada pelas cordas de Cesar Faria, pai de Paulinho da
Viola, no recital O Menestrel, no
Teatro Jovem, na praia de Botafogo. Clementina tomou uma garrafa de vermute
para criar coragem, entrou no palco e o sucesso foi imediato. Saiu
aplaudidíssima. No ano seguinte, integrou o elenco do musical Rosa de Ouro, ao lado de cobras criadas
como Elton Medeiros, Aracy Cortes, Paulinho da Viola, Anescarzinho do Salgueiro
e Nelson Sargento, espetáculo que resultou em dois álbuns. Aquele vozeirão
indomável contrastava com a refinada delicadeza de Aracy, num contraponto que
muito bem representa a riqueza da nossa música. Em pouco tempo era escalada
para representar o Brasil no Festival Mundial de Arte Negra, no Senegal, e num
show em Cannes, na França. Em 1968, gravou com Pixinguinha e João da Baiana o
disco Gente da Antiga, com
composições do mestre Pixinguinha, João da Baiana e velhos temas folclóricos que
aprendera ainda na roça. Nas décadas seguintes gravou mais cinco álbuns solo e
participou de novas gravações coletivas, sempre recuperando com sua voz de
terreiro o canto ancestral de sua gente, ao qual mesclava novas composições de
autores modernos. É antológica sua versão para Incompatibilidade de Gênios, de João Bosco e Aldir Blanc.
Nelson Sargento, Clementina e Elton Medeiros
Voz cavernosa,
grave e potente, quando entrava no palco, toda de branco, pele muito negra, Quelé
parecia uma entidade flutuando em direção ao microfone, como ilustra a capa do
LP Marinheiro Só (1973). Chamaram-na
de Rainha Ginga, a valente angolana que enfrentou os portugueses no século XVI,
agora renascida nos campos de café do Brasil. “Clementina era uma negra banto.
Aliás o canto dela era o canto de uma negra banto”, diz em depoimento no livro
o compositor Elton Medeiros. Em 2000, antecipando-se ao centenário de seu
nascimento, a EMI editou com patrocínio da Petrobras uma caixa com nove de seus
álbuns. Num projeto, novamente, de Hermínio Bello de Carvalho, a caixa é composta pelos dois volumes do Rosa de Ouro, Clementina de Jesus, Gente da Antiga (com Pixinguinha e João da Baiana), Mudando de Conversa (com Cyro Monteiro e Nora Ney), Fala Mangueira, Marinheira Só, Clementina de Jesus (com Carlos Cachaça) e Clementina e Convidados. A importância de Clementina foi
reconhecida em 1983 pelo então vice-governador e secretário da Cultura fluminense,
o antropólogo Darcy Ribeiro, que reuniu um time de primeira da música popular
para homenageá-la no Teatro Municipal, numa noite de gala para a qual alguns
torceram o nariz. Para Darcy, “Clementina é a voz dos milhões de negros
desfeitos no fazimento do Brasil”.
Quelé, uma entidade no palco
Quando Quelé
surgiu nos palcos, o Brasil vinha da era dos vozeirões, Carlos Galhardo,
Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Angela Maria e Dalva de Oliveira ainda
ocupavam as ondas do rádio, ofuscados pela Bossa Nova. Clementina era um bicho
estranho aos dois universos. A partir dela, gravadoras, artistas e público
passaram a receber com maior tolerância as vozes fora da curva, abrindo caminho
para que compositores se arriscassem como intérpretes de suas canções.
Clementina abriu caminho para que gente como os compositores Synval Silva,
Cartola e Nelson Cavaquinho pudesse botar voz em seus próprios sambas. Clementina morreu no dia 19
de julho de 1987, de derrame, aos 86 anos. Ela foi pioneira, graças à visão de
Hermínio, um grande descobridor e incentivador de talentos de todos os matizes.
Seu legado é significativo no contexto da contribuição dos negros para a música
popular brasileira. A Rainha Ginga não deixou sucessora, mas sua saga,
sociologia à parte, está bem contada nesse livro que chega agora às livrarias.
VEJA, 22 de fevereiro de 2017
Discografia
Rosa de Ouro 1(1965)
Rosa de Ouro 2 (1967)
Clementina de Jesus (1966)
Gente da Antiga (1968)
Marinheiro Só (1973)
Clementina, cadê você (1970)
Fala Mangueira (1968)
Mudando de Conversa (1968)
Clementina e Convidados (1979)
Clementina - de Jesus - convidado especial: Carlos Cachaça (1975)